quarta-feira, 9 de outubro de 2013






ann he















Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

 Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

ruy belo







quando era pequena era loira e tinha os joelhos tão tortos que as minhas saias eram mais compridas. de propósito só para os tapar - tinha uma terrível afeição por notas e para me portar bem era só dar-me uma ou outra para a mão - lembro-me que não gostava das estátuas da virgem maria e quase sempre fazia dela a minha boneca. onde experimentava as roupas da barbie ou fazia espetaculares pinturas - a minha avó. que por ser tão paciente e amável há-de estar no céu. ensinou-me bonitas canções. histórias de uma carolina com lagartos na saia ou de um serafim que comia sem usar colher. que eu cantava tapada abaixo até ao rio - sempre gostei muito de água. ainda hoje. sentar-me descalça na borda do tâmega e deixar os peixes pequenos fazerem-me cócegas nos pés. dormir com as mãos dentro de água. ainda hoje - eu sei que a minha avó já cá não está mas às vezes é como se ela me desse uma nota para a mão. eu a apertasse tão forte que as unhas me ficassem marcadas na palma. e a ouvisse dizer - porta-te bem.











sábado, 5 de outubro de 2013










laura makabresku







Por tu amor me duele el aire,
el corazón
y el sombrero.

lorca









 o caminho faz-se caminhando - assim me dizia a boca ao coração. como um segredo que o tempo guarda - os dias passam. lentamente. uns sobre os outros. o corpo resiste à memória - não quero perder nada - os caminhos da minha infância. o cheiro a hortelã. o gosto da canja de galinha. o entardecer na ponte. o teu sorriso demorado. os caracóis no quintal. as histórias do tio zé. não quero perder nada - o meu maior medo é esquecer - as girandolas. a geada nos campos. as flores amarelas das giestas. a água fria do tâmega. as modas da joaquina. as quadras dos réis. as saias da dona isaura. os diospiros do ferreiro. a marmelada. a lenha a estalar no lume. as urtigas nas pernas - o meu maior medo é esquecer - as tangerinas. a roupa a secar na eira. a aletria quente. as ceroulas do avô. o frio das manhãs em dezembro. os mergulhos. as meias de lã - não quero perder o teu nome. as ruas por onde passaste. os lugares onde me levaste. nenhuma festa. nenhum carinho. não quero perder-te e o corpo resiste à memória.








quarta-feira, 2 de outubro de 2013










Ann He











Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
 perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui


ruy belo






às vezes invento terra. só para construir montes onde existam bosques e árvores densas onde guardar memórias - ando pela vida. às vezes sem vontade. como em pesadelos. e invento dias melhores. um futuro onde sossegar o corpo e entregar a pele ao frio das manhãs - as estações passam por mim como pirilampos no verão. depressa chegam. depressa partem. e não há um momento em que a consciência consiga nomear o dia exato de estar. apenas se é hoje ou amanhã - tenho uma vaga ideia dos dias porque o corpo adormece e acorda em diferentes lugares. sei quando escurece porque não se vêem as nuvens. pouco mais - tantas vezes me esqueço de mim. até. que descubro que idade tenho porque me dói andar - o meu maior medo é morrer sem me lembrar de quem me fez feliz.