segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012






brittany nicol fabry







e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

al berto







talvez esta fome de afecto tenha vindo com os pássaros - outra primavera nos conheceu. vento quente ao fim da tarde - estarão de regresso as andorinhas? - nenhum regresso as conhece. as árvores esquecem os seus nomes. as casas já não lhes pertencem - com o tempo aprendo a difícil arte da melancolia. nenhuma esperança aquece a pele. não há futuro - ao acordar ainda não é primavera




quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012










stefany alves



Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas


ruy belo







gosto de lembrar-te as tranças pretas. duas. as mechas de cabelo assim alinhada - como nunca vi em outro cabelo. nem outra cabeça segura agora tão perfeitas tranças - às vezes de noite ainda te procuro. mal fecho os olhos são os teus que vejo. e que tamanha tristeza me envolve que já nem sei a cor dos teus olhos. perdi as formas do teu rosto - procurei-te nas estações frias mas disseram-me que tinhas partido para as quentes. talvez agora te encontre. quando março chegar e o calor segurar a casa -














terça-feira, 21 de fevereiro de 2012











miranda lehman






Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

manuel antónio pina










deste modo vou. entro pela vida com a mesma pressa de um pássaro que aprende o voo - um dia talvez os dias custem menos a passar. e as horas não interrompam a tristeza como eu sou - para esperar são precisos dois corpos. o que corre e o que senta. talvez a minha pele se acostume ao frio e a noite se encha de precipícios - ou talvez não - o que sei: nascemos e morremos nús. e não voltamos -


de algum modo alguém me espera.







domingo, 19 de fevereiro de 2012










natalie kucken





— Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?

herberto helder










de manga curta de encontro ao vidro. assim te lembro - cabelo escuro. olhos rasos de água e um jeito para dizer adeus que não vi em mais nenhuma mulher - podias ter sido a mãe dos meus filhos - dava esta vida por outra onde tu ainda estivesses - assim calma. só. a passear pelo corredor noite fora. até te cansarem os pés. ou te doerem as pernas - via um futuro inteiro nos teus olhos. até partires. era teu o meu futuro. ser doutor. ter uma casa voltada para o mar. com piscina. um baloiço e uma sebe de silvestres - iria chamar-se amália. chama-se maria e tem os olhos da mãe. melhor tivesse os teus. castanho denso. melhor - quiseste cedo a morte. já sabia. noites longas. dias curtos. essa tristeza funda de quem quer o mundo - e dentro doíam-te todas as coisas que amavas. por não serem como querias -







quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012


















Acende o cigarro, rapariga. E olha para a
rua onde passam transeuntes desconhecidos.
A tarde vai avançando e nós morrendo nela
ou morrendo nela as nossas esperanças,
a ilusão de eternidade. A beleza o que é?
Braços nus, o ventre liso nu, os cabelos caídos
nos ombros. A desconhecida concentra em si
a atenção do homem desocupado. Para
distrair-se, ele olha para ela e recorda-se
da história antiga do amor, reconstrói
ficções que sabe serem apenas ficções. Assim
passa o tempo, depois irá para casa. Quem
sabe o segredo mais secreto da existência
de cada um? Todos nós temos uma
história. Uns calam-na, outros murmuram
entre dentes os episódios essenciais, outros
encontram palavras com que construir o
poema hermético. Que diferença é que faz?
De tudo se constrói a existência, se alimenta
o sentido. Camisa branca à flor da pele, a
rapariga levantou-se e foi lá dentro do café
comprar qualquer coisa. Palavras, deixai-me
celebrar o vão movimento dos ponteiros do
relógio, os episódios vãos, a nossa morte.

joão camilo






por tudo o que te disse perdoa. talvez um dia quando as nuvens forem nossas descubras que tudo fiz para que sorrisses - talvez se o fogo não queimasse o corpo - se o dedo arder. sopra. vento brando norte. como palavras que se segredam pequenas como o silêncio. dessas que não nasceram para serem ditas em voz alta - que me dói assim esquecer o que tarde aprendi. amor - nasci para ser pássaro. perdoa.








segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012











marie zucker









Engoli
água. Profundamente: a água estancada no ar.
Uma estrela materna.
E estou aqui devorado pelo meu soluço,
leve da minha cara.
O copo feito de estrela. A água com tanta força
no copo. Tenho as unhas negras.
Agarro nesse copo, bebo por essa estrela.
Sou inocente, vago, fremente, potente,
tumefacto.
A iluminação que a água parada faz em mim
das mãos à boca.
Entro nos sítios amplos.
— O poder de reluzir em mim um alimento
ignoto; a cara
se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue,
abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli
água. A mãe e a criança demoníaca
estavam sentadas na pedra vermelha.
Engoli
água profunda.

herberto helder









quase sempre só. nem limites o corpo encontra para a solidão - e o tempo que passa livre com os pássaros faz cobrir de neve as serras - tenho histórias para contar. coisas que ninguém ouviu. de corpos. de rostos. de bocas que me falam. só a pele viu - em algum lugar. sei. alguém me escuta - e é como se dissesse: água e um mar me entrasse nos orifícios do corpo - no futuro morrerei de água. ou fogo. ou terra. ou ar - talvez um quinto elemento me espere noutra vida com um final feliz.








*
à sandra
por me ler
sem que saiba