sexta-feira, 30 de maio de 2014











martina herisz



















não regresses a mim. não me procures. leva-me
ao campo aberto onde começa o escuro
passado dos sentidos,
às manhãs de ocidente, no planalto
que fica ali ao fundo da avenida
e nada nos recorda,

onde o futuro aéreo se mistura
ao corpo repetido.
detesto estes empregos, as mãos dos arquitectos
o plano quinquenal de mais progresso,
os vestígios de chuva brasileira
na gaveta do fundo, a mais esquiva,

a adição do cálculo subtraída.
despede-me de mm. deixa-me olhar
o leque de água, o fogo frio, a lama;
um só instante. agora
deixa-me cego e só traçar o risco
onde a luz se desfaz e se repete.

antónio franco alexandre






no tempo de espera uma mulher enche o coração de imagens - o teu nome por cima de todas as mulheres. o teu rosto em todos os rostos. e eu corro e fujo para uma memória que não me possa prender - num galho de árvore. fino. um pássaro. ao longe os eucaliptos verde-cinza. as minhas mãos tingidas de amoras procuram por entre os fentos uma lagarta - onde estás. quando regresso aos tempos de correr monte acima. monte abaixo. à procura - cátia. cátia. no horizonte. corpo de luz. a minha avó. sorriso feito ao mundo - estávamos no fim de maio e não havia chuva. lembro-me como se fosse hoje. tinhas apanhado um melro ferido numa asa. chamei-lhe 'só' e fomos amigos - dias depois 'só' morreu - avó. espero que 'só' te acompanhe em altos voos. 



























quinta-feira, 29 de maio de 2014










juh ore duh anne












A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!
paulo leminski






ir com os pássaros. passar de rasante as nuvens. adivinhar-lhes as formas. picar-lhes o coração. mais tarde descobrir que os sonhos são a melhor parte da vida. ainda que só existam quando o corpo dorme - sem corpo é mais fácil voar - sei que o errado existe para que se reconheça o certo. que o céu e a terra não se tocam. mas quando fecho os olhos estou certa que em algum lugar isso acontece e nasce amor - os pinheiros altos da minha infância. onde os corvos fazem ninho. regressam. de pés molhados volto aos tempos pequenos de ser tudo enorme. sou feliz e os meus cabelos livres. e os meus braços esbarram em braços de árvores. não dói. nada dói quando assim sorrimos -








sexta-feira, 23 de maio de 2014
































O destino destina 
mas o resto é comigo

miguel torga












esta manhã acordei contigo - saímos de casa. cruzamos a rua e ficamos a admirar as nuvens brancas no céu. marcamos de paz o mundo. subíamos a rua de mãos dadas quando uma pomba. num voo rasteiro. se abeirou de nós. deste-me uma migalha do pão que comias - ensinaste-me a respeitar todos os seres. a natureza dos corpos. o movimento das árvores. a certeza dos ventos - avó. eu sei que já morreste mas hoje acordaste comigo - tenho muitas saudades tuas. das nossas conversas. dos teus braços. repito o teu nome baixinho. volto aos nossos lugares - tu sabes às vezes tenho uma paz. uma calma. e a lágrima regressa e teima e dói o coração. aperta-me a garganta e quase sem ar o corpo vai - sei que estás comigo. sabes da minha vida. imagino-te a puxar-me pelo braço. às vezes ouço-te dizer: vem por aqui. e eu vou avó. eu vou - o meu mundo. tal como o conhecia. morreu contigo. e foi difícil conhecer outro. foi duro. hoje sou uma pessoa melhor. deixaste-me a tua bondade. um sentido para a vida - e eu sei que me ouves dizer: amo-te avó.











sábado, 17 de maio de 2014













mariam sitchinava












Mar
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
al berto











não sei ana se já te falei da chuva. se já te disse das flores. de ser primavera lá fora. se te contei de quando me cortei no tórax com uma tesoura - queria tirar-me do peito o coração - de como no lugar da ferida me cresceram algas. tempos houve em que cortava o corpo. procurava em todas as feridas um pedaço de coração a abater. doía-me tão forte dentro, ana, doía-me tão forte e tão fundo dentro da pele. não sei ana se já te falei de amo. de voltar os olhos para o mundo e ver crescer-lhe flores dentro. é destas flores que te devia ter falado. de como estas flores te enchem subitamente de vida. e o amor também dói. sobretudo quando está longe e o corpo o chama para perto e ele não ouve. é que o amor às vezes não tem ouvidos ana - trouxe-te hoje um segredo. quero dizer-to quando o sol chegar mas hoje não há sol. estou terrivelmente só. ana. - trago dentro de mim todas as histórias. marcas de facas e tesouras na pele. memórias que arrastam memórias. de sangue. de dor. de ter morrido já - ainda não te contei de como morri. era dezembro. engoli uma caixa de anti-depressivos. lembro-me de ter escrito um pequeno testamento. deixava-te os meus livros ana.  a ti que nunca conheci. deixava-te os meus livros - o hospital é um lugar frio quando se acorda da morte. eu tinha frio e não havia nenhum corpo ali ao lado.  que me aquecesse. que me abraçasse. nenhum corpo. ana. nenhum -  morri e nasci sozinha. e digo-te ana ninguém deve morrer só. não há nada mais triste do que morrer só. não sei hoje ana se já te falei da chuva.



































quinta-feira, 8 de maio de 2014











mariam sitchinava














Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?

eugénio de andrade









às vezes o silêncio ocupa todos os lugares e o coração. que não tem como falar. bate - os meses passam e eu ainda só - agora já aqui não estás e as paisagens de nada valem. nenhum olhar teu será destes montes. do verde musgo. do vento. vontade de ir céu adentro. para sempre - digo todos os nomes na esperança de que regresses. nenhuma palavra te tratá de volta. nenhum nome. nenhum corpo - quero gritar o teu corpo - com a cabeça no teu colo contavas-me segredos e eu prometia que não ia dizer a ninguém. desconfio que às vezes eram só histórias - quando assim estava. de olhos fechados. nenhum mundo me conhecia -