sábado, 29 de novembro de 2014







ezgi polat










De que nos serve, no sábado à noite, quando a solidão 
dos abandonados vem ter connosco à mesa dos cafés, 
termos sido aquele a quem se disseram palavras de amor, 
terem-nos tocado e olhado, esperado por nós, 
enquanto ao longe os automóveis passavam, as pessoas, 
apressadas, continuavam a procurar, febris, a felicidade? 
Rompem-se as cordas, soam nos rios tristes da memória 
os sinos da miséria e da escuridão. E se chove, 
a melancolia que nos oprime já não se dilui nessa água suave. 
A rapariga que podíamos ter amado, a última, 
contempla as folhas verdes das árvores, sorri, 
e imagina, sentada ao nosso lado, uma alegria dolorosa, 
sem pensar em nós, distraída da densidade baça do nosso olhar. 
E à uma da manhã, quando o cansaço vem, 
e no espelho da casa de banho de um bar o rosto 
se nos revela atormentado, os poros gordurosos, 
dirigimo-nos devagar para a saída, dizemos boa-noite, 
e é só nossa essa morte secreta, esse abandono. 
joão camilo









na construção dos dias felizes o teu rosto. como um silêncio que a tristeza não reconhece - neste fim de tarde. tão sossegado. os meus braços caídos como dois galhos pesados de frutos. despeço-me de ti - a verdade azul púrpura. entreaberta de nuvens. a afirmar-se gélida na pele - sei que morreste. a esse respeito nada direi - quatro anos passaram desde a tua morte e a minha vida sempre a mesma. tão só me vejo. tão sem nada. que não me sinto já com forças para construir a casa na árvore. que me prometeste quando fiz cinco anos. que te prometi quando fizeste oitenta - os anos passam tão perto de nós. tantas marcas tenho hoje na pele - há meia dúzia de anos a promessa da árvore fazia sentido. tinha em mim a força de mil homens. a habilidade de mil mulheres. guardei bolotas. pinhas. ramos e pedras. sequei folhas no meio de livros e listas telefónicas. faríamos espanta espíritos  - desapareces com a luz do fim de tarde - o teu sorriso brando a atravessa o vazio e passa. tão junto ao meu ouvido. que ia jurar que aí semeia segredos - digo boa noite e abeiro-me do precipício. 













sexta-feira, 14 de novembro de 2014
















Que te acontece que não mais fizeste anos
embora a mesa posta continue à tua espera
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez
florido?

ruy belo







nunca me deixaste inteiramente e mesmo que o teu corpo não regresse a memória dá-lhe vida - hoje é como se me abraçasses. assim quente. assim tão perto. que o meu corpo todo se encolhe - o que fizeram ao meu coração não interessa. não hoje. não agora. que o dia me seja bom. que a vida me guarde uma eternidade tranquila. contigo. é só este o meu desejo de aniversário - o tempo passa tão depressa. tão depressa. e a gente nem o sente. nem o cuida. o tempo que tive contigo foi tão pouco - avó. não sei onde estás. mas imagino-te encostada a uma estrela. a fazer casa numa constelação 














quinta-feira, 13 de novembro de 2014





elizabeth gadd











o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração

al berto













entre nós a vida aconteceu - como num dia de outono a chuva acontece.  assim entre nós tanta água. tanto frio. tanto mar. e uma distância dormente. no peito o peso da culpa do que não foi - e o corpo sem ar. de peito feito ao futuro 








terça-feira, 4 de novembro de 2014






ezgi polat











'Se partiste, não sei.
Porque estás,
tanto quanto sempre estiveste.


Essa tua,
tão nossa, presença
enche de sombra a casa
como se criasse,
dentro de nós,
uma outra casa.

No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.

Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo de morrer
como se nos estivesse ensinando
um outro modo de viver.

Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.

Os lugares que buscaste
não têm geografia.

São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.

Moras dentro,
sem deus nem adeus.'

mia couto






estás no canto do sofá onde sempre te sentavas. sei dos teus aventais a secar no estendal debaixo do coberto. ouço as tuas pantufas arrastar na tijoleira. a tua tosse de madrugada. e aquele cheirinho a cevada fresca pela manhã. o doce de abóbora a fazer-se na panela mais funda. as galhas de eucalipto no jarrão da sala - nunca daqui saiste e. ainda assim. sei que em algum lugar teu corpo me espera - ao chegar à boca da quelha chamo por ti. o teu nome a enrolar-se na minha língua. até sufocar - valentina - avó - não ouvir-te dói - em dias de chuva sentavas-me no teu colo: nuvem dá-me água para eu dar ao vale. para o vale me dar erva. para eu dar à égua ... - e rias tão alto que as nuvens fugiam -