quarta-feira, 16 de setembro de 2009





#então dizia-me: chega-te aqui, abraça-me. eu erguia o corpo até ao limiar do seu queixo e, com as mãos dadas ao seu pescoço, beijava-lhe o ombro e adormecia-lhe a ânsia. várias noites a ouvi falar de silêncio, os dentes a morder o lábio inferior, a pele gelada, às vezes voltava-se e ficava a olhar-me como se fosse feito de mar,
às vezes fingia que dormia ou voava, sempre quieta, como se a cama estivesse já tão acostumada àquela posição do corpo que alterá-la lhe causasse dor. tudo nela me inquietava, desde o semblante de pássaro sem bico, ao corpo de pássaro sem asas, tudo naquele pássaro era imperfeito e belo.




#ontem, desci as mãos pelo corpo dentro e fustiguei o coração. é talvez este o dia mais perfeito da minha vida, ou por ser quase outono, ou por ser quase tempestade, ou por ser quase choro, ou quase riso, ou quase vida ou quase nada. é talvez neste quase não estar onde, neste quase não ser, que se constróem as leis do improviso. queria improvisar agora um coração novo, mais saudável, menos triste e só, mais tolerante e falar dele como quem fala de si, a gente já nem reconheço.




# quase sempre adaptava o corpo aos lugares, era como se o corpo fosse de plasticina feito e se moldasse ao banco, à cadeira, à esquina de rua, ao degrau da escada, à pedra do muro, a outro corpo. os corpos são como objectos. quando olho o meu corpo não é a mim que vejo, é ao meu contrário, ao homem que de dentro se fez fora e foi capaz de construir um perfil opaco. gostava de bramir-me os membros, primeiro as mãos, depois os braços, as pernas, mais tarde, quem sabe, o coração. e retumbar depois os sentimentos, primeiro a saudade, depois a ânsia, a tristeza, mais tarde, quem sabe, o amor.




#perguntou-me: quando és deserto?
deixei a pergunta dar a volta à sala e sem vontade de responder, escondi-me. falei de tudo menos de silêncios, sempre tive medo de cair em redondâncias. é a esta mulher que amo, aos seus cabelos quase brancos, à sua tez enrugada, ao amadurecimento das nossas pequenas memórias, desde o tempo em que eramos duas crianças e pensavamos que o céu era um reflexo do mar. ao amor já nada escrevo, deixei de acreditar nele, com o tempo apercebo-me que é tudo tão credível quanto eu. desta mulher esperei tudo, menos que desconhecesse quando sou deserto ou quando sou o mundo. é o mesmo que esperar de mim a vida e não encontrar nada.



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