quarta-feira, 27 de outubro de 2010
há um país soberbo, um país de Cocanha, dizem, que eu sonho visitar em companhia de uma velha amiga. País singular, mergulhado nas brumas do nosso Norte, e a que poderíamos chamar o Oriente do Ocidente, a China da Europa, de tal maneira nele se espraiou a ardente e caprichosa fantasia, de tal maneira ela o ilustrou, paciente e obstinada, com suas sábias e delicadas vegetações.
Verdadeiro país de Cocanha, onde tudo é belo, rico, tranquilo, harmonioso; onde o luxo se compraz em mirar-se na ordem; onde a vida é fácil e doce de respirar; onde não se conhece a desordem, a turbulência e o imprevisto; onde a felicidade se casa ao silêncio; onde até a cozinha é poética, farta e excitante ao mesmo tempo; onde tudo se parece contigo, meu querido anjo.
Conheces essa doença febril que se apodera de nós nas frias misérias, essa nostalgia do país desconhecido, essa angústia da curiosidade? Há uma região que se parece contigo, onde tudo é belo, rico, tranquilo e harmonioso, onde a fantasia construiu e decorou uma China ocidental, onde a vida é doce de respirar, onde a felicidade se casa ao silêncio. É lá que se deve ir viver, é lá que se deve ir morrer!
Sim, lá é que se deve ir respirar, sonhar e prolongar as horas pelo infinito das sensações. Um músico escreveu o Convite à Valsa; onde aquele que há de compor o Convite à Viagem, que se possa oferecer à mulher amada, à irmã eleita?
Sim, nessa atmosfera é que seria bom viver - além, onde as horas, mais vagorosas, contêm mais pensamentos, onde os relógios fazem soar a ventura com mais funda e mais significativa solenidade.
Em luzentes painéis, ou em couros dourados e de uma riqueza sombria, vivem discretamente pinturas beatas, calmas e profundas, como a alma dos artistas que a idearam. Os poentes, que tão ricamente colerem a sala de jantar ou a de visitas, são coados por belos estofos, ou por essas altas janelas trabalhadas que o chumbo divide em numerosos compartimentos. Os móveis são vastos, curiosos, estranhos, armados de fechaduras e segredos como almas requintadas. Os espelhos, os metais, os estofos, os ouros e as faianças executam para os olhos uma sinfonia muda e misteriosa; e de todas as coisas, de todos os recantos, das frestas das gavetas e das pregas dos estofos, exala-se um perfume singular, uma santidade de Sumatra, que é como que a alma do apartamento.
Verdadeiro país de Cocanha, digo-te eu, onde tudo é rico, asseado e rebrilhante, como uma bela consciência, uma suntuosa bateria de cozinha, uma ouriverasia esplêndida, uma joalheria multicor! Para ele afluem os tesouros do mundo, como para a casa de um homem laborioso e que fez juz à gratidão do mundo inteiro. País singular, superior aos outros, como a Arte à Natureza, onde esta é reformada pelo sonho, retocada, embelezada, refundida.
Procurem, tornem à procurar, dilatem continuamente os limites de sua felicidade, esses alquimistas da horticultura! Ofereçam prêmios de sessenta e cem mil florins a quem lhes resolver os ambiciosos problemas! Por mim, encontrei a minha tulipa negra e a minha dália azul!
Incomparável flor, tulipa revelada, dália alegórica, não é lá, nessa bela região tão serena e pensativa, que seria bom ir viver e florir! Não ficarias, lá, emoldurada em tua analogia, e não poderias espelhar-te, para falar a linguagem dos místicos, em tua própria correspondência?
Sonhos! sempre sonhos! e quanto mais ambiciosa e fina é alma, tanto mais os sonhos a afastam do possível. Cada homem traz em si sua dose de ópio natural, constantemente segregada e renovada; e, do nascimento à morte, quantas horas podemos contar preenchidas pelo verdadeiro prazer, pela ação feliz e resoluta? Viveremos jamais, conheceremos algum dia esse quadro que o meu espírito pintou, esse quadro que se parece contigo?
Esses tesouros, esses móveis, esse luxo, essa ordem. esses perfumes, essas flores miraculosas, tudo isso és tu. És tu, ainda, aqueles grandes rios e aqueles canais sossegados. Os enormes navios que eles carregam, atulhados de riquezas, e donde sobem os monótonos cantos da manobra, são os meus pensamentos que dormem rolam sobre o teu seio. Docemente os conduzes para o mar que é o Infinito, a refletir as profundezas do céu na limpidez de tua bela alma; e quando, fatigados do marulhar das ondas e repletos dos produtos do Oriente, eles reentram no porto natal, são ainda os meus pensamentos enriquecidos que do Infinito volvem para ti.
charles baudelaire
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário