terça-feira, 29 de novembro de 2011















chloe wasp









abro a porta: espera-me o cansaço
de uma casa acabada.
Os passos tinham um desígnio
quando me sentava à janela
a ver a chuva a bater nas oliveiras
e a arvéola a recolher-se no telhado da varanda.
Tu empurravas a porta:
o som:
animal da tua passagem.
E eu reconhecia-te
na sombra trémula do lume
:
os ratos são as horas
da noite, sons da casa
a ruir: a insónia soletra
os números da morte


regressa límpido da viagem:
o silêncio é a história que tem para contar.


rui nunes








os dias. só cá existem para os contar. atrás das noites reproduzidos em onomatopeias - quero dizer-te: não volto nunca mais - mas nunca mais é longe e o tempo passa com os dias - os teus passos estão de visita. por todas as noites - contas-me histórias felizes. um cavalo pequeno. de carrossel. à nossa volta - fica mais um pouco avó. até adormecer. dói-me tanto o corpo. a noite é tão comprida. que não fossem preciso desculpas para o teu corpo me abraçar muito















sexta-feira, 25 de novembro de 2011













lieke romeijn





Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios abertíssimos da voz.
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.

herberto helder







não digam das horas tardias. de ler clarice. de sentir frio nos dedos descobertos das mãos - houve um tempo. não muito longe. onde ao acordar a árvore ainda lá estava. enorme. dentro do quarto. à espera para me ver partir. hoje não há árvores. eu não as encontro. e procuro dentro dos armários. debaixo dos tapetes. por baixo da cama. em cima dos móveis. nenhuma árvore me espera - ainda me lembro de haverem árvores e pássaros de bico amarelo. voavam à volta dos candeeiros. cantavam. músicas que só conhece quem está vivo - talvez eu tenha morrido










quinta-feira, 24 de novembro de 2011
















lieke romeijn


















não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas
ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.


al berto







todas as coisas que vi. que vivi. ou sonhei. são para ti. por serem tuas as noites imensas. os dias claros. a pele pálida dos corpos. as manhãs claras. a sombra das árvores no pátio. o frio das tardes de outono - às vezes. quando o corpo dói. fecho a boca de fininho. sem que ninguém veja. e fico a inventar-me jeitos de ser - por desconhecer verbos simples. choro - os anos passam e o corpo sempre tão só. adormece - tinha para ti as maiores esperanças que o mundo todo conheceu - os sorrisos que havia roubado aos rostos que amei. foram para ti. para um futuro que inventei nosso -










segunda-feira, 21 de novembro de 2011












elena kholkina


















Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento


herberto helder










a beleza das coisas foi de férias para macau. dizem que lá os pássaros não adormecem. há manhãs claras e flores de cores que não sabemos que existem - a certeza de querer outro planeta. mais outono. uma cesta de fruta fresca na mesa. cevada quente. doce de abóbora e a ternura dos dias. para sempre - já ontem me custou a adormecer. a bell song chamava as noites e dentro da boca cresciam lágrimas










domingo, 20 de novembro de 2011













julie lansom






Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


ruy belo







- um dia percorria as nuvens quando encontrei um gigante. cabelos soltos pelas costas. olhar azul. muito azul céu quando está bom tempo. perguntei-lhe quem era. respondeu-me que não se dão nomes às estrelas - ainda acredito nas nuvens. nos gigantes que vivem nelas. das estrelas sem nome - como se fosse de noite. me doessem os olhos à luz e fechar as pálpebras fosse mais simples que o mar.


tudo o que queria era adormecer no mar alto. com sargaço colado à pele e a tristeza húmida de águas brandas





























brittany markert






Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze taxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover.

antónio lobo antunes









a tristeza dos dias pequenos instala-se na casa - tem os dias contados e conhece de trás para a frente todas as datas importantes. quando é natal ou quando morreu avó. ou quando o tio desapareceu no mato. quando a porta me caiu em cima do pé. quando não soube e corri de encontro ao intelecto - hoje queria um coração maior. onde escrever a maior árvore do mundo. com ninhos de pássaros de todas as espécies e feitios - mas nenhum coração a mim regressa. nem nos dias quietos onde invento o futuro - talvez por ser domingo me doam assim os ossos. talvez tenha a crescer no tórax mais uma esperança vã - eu adormeço e acordo e os dias ainda lá estão para que não me esqueça de ti.










quarta-feira, 2 de novembro de 2011












katya e anya










Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.



carlos drummond de andrade












no mundo não há humanos e se os houvesse como dizer-lhes que tão pequeno é o lugar que ocupam na terra - um dia talvez nasçam outros humanos. verdadeiros humanos. com a cabeça cheia de ideias. que governem estes. ainda que não-humanos vivem como se o fossem - um dia talvez haja mais estações onde entregar não-humanos à felicidade. hoje não dá. não-humanos doem. e até ao coração escrevi partidas por bater pouco e doer tanto.