domingo, 26 de agosto de 2012






margaret durow




 o que me preocupa é que tu estejas bem, a única coisa na vida que me preocupa é que tu estejas bem, o resto não tem importância, que tu estejas bem por mim que não espero seja o que for, passou muito tempo, entendes, demasiado tempo e não há tempo para mim hoje em dia, chega acontecer, vê só a estupidez, chega a acontecer imaginar-me morta e não é inteiramente desagradável, calcula, porque, pensando um bocadinho nisso, desde que me tornei mulher quando é que foi bom viver? 
  antónio lobo antunes





os grilos. os ralos. as cigarras e os pirilampos vêm à noite para me lembrar que é agosto - que este mês não acabe e a figueira volte a encher-se de figos maduros. de mel. que a água vai no rio fria e as tardes são de calor entre as árvores e um areal imaginado - e nas pedras faço casa. uma imensidão de água. e a floresta a perder de vista e eu a perder-me nela - que o meu não futuro fosse este e aqui ficasse para sempre. entre um mergulho e outro apetece-me morrer dentro de água. com a pele eriçada pela mudança de temperatura e a cabeça esquecida do mundo -




segunda-feira, 20 de agosto de 2012




aëla labbé








 Apenas uma boca. A tua boca
Apenas outra, a outra tua boca
 É Primavera e ri a tua boca
De ser Agosto já na outra boca

david mourão-ferreira








dizem que é tarde. que já não há pássaros nem estrelas e o céu anda deserto. dizem que por ti morreram todas as nuvens e a chuva se extinguiu como se extinguem os gestos quando deixam de se dar há muito tempo - tinhas um jeito manso de ser. leve como o vento. ias empurrando os dias. uns atrás dos outros. com esperança no futuro - gabo-te a paciência. há muito que deixei de acreditar. de ter esperança - sei apenas da existência do mar quando faz frio. que no tempo quente é doutra gente mais sargaceira - queria que me dissessem que está tudo bem. que o vento vai voltar. que nada acaba para sempre - 




sexta-feira, 17 de agosto de 2012




rebecca rijsdijk








 queria de ti um país de bondade e de bruma
 queria de ti o mar de uma rosa de espuma
 mário cesariny 








 - a nossa última viagem foi em silêncio. talvez porque o meu coração ainda não aprendera a falar a tua língua - sempre quis para ti mais do que tudo o que possas imaginar. melhor. um novo país. outra terra. um sol diferente. uma água mais clara. um mar mais quente. uma luz que acalmasse - lá longe. no infinito. acredito que seja possível alguém gostar assim de mim. dessa forma tão clara que incendeia a pele - não te digo que não me queimassem os ossos mas era uma dor boa - nunca pensei. nem penso. que possa ser possível alguém gostar assim de mim. tanto que me conheça. melhor até que eu própria. que me impulsione a crescer - quero dizer-te hoje que o meu coração aprendeu todas as línguas do universo.





sexta-feira, 10 de agosto de 2012




lea mandana








 Cresceram-me entre os ossos já as primeiras ervas.
Talvez dos descampados que me vêm
 o espírito acabar à boca dos sentidos por fim surjam aqueles que quando escavam
o fazem como se avançassem
assim para uma vida mais autêntica. Terão o tempo nas mãos como uma enxada.
Brilhar-lhes-ão nas pás
pedaços do meu corpo que respiram.


 luís miguel nava






costumavas dizer-me frases tão reais que tiravam sentido à vida - a vida faz-se caminhando - todos estes anos caminhei como se não houvesse amanhã - hoje questiono o caminho. se será este. se estarás por aqui. se terá um fim. julgo que não e tenho pena - no fundo só queria encontrar-te para uma conversa. queria que me falasses de mim. que futuro o meu - o mundo mudou. antigamente a figueira tinha mais figos. o céu estava mais limpo. o verão era mais quente. o caminho não tinha silvas - mas sem silvas não há amoras



terça-feira, 7 de agosto de 2012





ezgi polat











 O meu país sabe a amoras bravas
no verão. Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.


eugénio de andrade




às vezes inventamos no silêncio um lugar onde sermos felizes. em segredo. e acreditamos que o somos ainda que à nossa volta o mundo nos saiba tristes - no verão a tristeza é outra. por não saber das amoras. nem de ti. e nenhum caminho nos levar a roma - queria para ti outro país. com estações mais quentes e a certeza de dias e dias de verão - nem parece agosto - decididamente os meses não são o que eram. quando corrias calçada abaixo em direção ao rio. olhos postos nas pedras com medo que escorregassem os pés. e a água fresca na pele. se quieta os peixes mordiam-te os pés enquanto escutavas o voo certeiro das libelinhas - decididamente os meses não são o que eram 





domingo, 5 de agosto de 2012















marija kovac










 O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
 O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.


 clarice lispector




 não parece agosto e agora que penso nenhum mês parece o mesmo desde que morreste. às tantas pela tua ausência mudaram os meses - tenho mais anos do que todos os anos que tiveste para me conhecer. porque todos os anos não chegam - quando gostamos de alguém os anos passam e nem nos damos conta. agora que partiste trocava os anos por dias - e de certo agosto seria o agosto que sempre conheci. com o sol cheio e os dias tão quentes a incendiar florestas. e o pai no quintal a regar as plantas com medo que se queimem. e a mãe a inventar tempo -




quinta-feira, 2 de agosto de 2012









rebecca rijsdijk







 A Vitória de Samotrácia
é mais ou menos a minha história sentimental: tinham todas um corpo
e asas até
mas pouca cabeça.

  daniel jonas





 quando não sei o que fazer do futuro costumo olhar para ti - como noé construíste uma arca onde guardas memórias de todas as espécies. por isso tenho contemplado os teus dias. é sempre noite quando no céu não há estrelas - talvez mais tarde repares que os meus dias se fazem dos teus - o dilúvio é um encontro entre o que queremos e o que podemos - não há como regressar de uma morte lenta mas talvez seja esse o futuro.