domingo, 27 de abril de 2014






mariam sitchinava















queria morrer contigo
não queria morrer de ti

prendi o amor nos meus braços
mas uma chuva de areia negra
cospe o meu sangue onde o coração

queria morrer contigo
contra o corpo limite do dia
arder praias onde o tempo acabava
começar Deus onde era o fim
não queria morrer de ti

a noite toda tem a espessura da perda
a boca beija o batimento da terra
o medo abraça-me

e ainda é tão tarde para que morramos os dois

pedro sena lino










todos os sábados à tarde. corpos por entre campas. limpando mármore. arranjando flores. acendendo lamparinas - chove. demoro-me entre túmulos. vejo rostos e nomes de mortos - assusta-me a dedicação dos vivos - algumas pessoas choram em redor de um túmulo coberto de ramos. a tua melhor amiga morreu há pouco. estarás com certeza à espera dela num pedaço de nuvem. reserva-lhe um lugar quente aí no céu - lembro-me de quando morreste e também a mim me apetece chorar - tantas vezes é como se ainda cá estivesses que nenhum sentido tem saber do teu corpo debaixo de terra. deitado na urna. já há quase quatro anos - um dia destes encontrei um retrato teu de quando eras nova. eras tão bonita. cabelos tão negros. tão bem apanhados. olhos verdazuis tão claros. corpo esbelto. eras tão só. foste a viúva mais nova que a aldeia conheceu -






terça-feira, 22 de abril de 2014











mariam sitchinava 





















Anda, vou-te mostrar a terra
dos teus pais, avós, antepassados
tão antigos que os podes escolher.
Este aqui é noé, de barba por fazer;
meteu na arca puro e impuro, bem e mal,
inventou o vinho, homem melhor
da sua geração ( não é grande elogio ),
teve filhos, netos, é de crer que morreu.
Estoutro, não sei bem, era pirata na malásia.
Vês as colinas? São tuas, quando
as olhas a direito. Realmente tuas,
parte de um mundo teu.
Sim, isso são filosofias,
tens razão. ( E tem graça ao ter razão ).
Anda daí, vou mostrar-te o colete de forças
onde era costume, sabes, tratar casos assim.

antónio franco alexandre 








tenho uma terrível afeição pelas coisas tristes. que fazem tremer a pele. doer o coração - às vezes corro forte céu fora. terra dentro. à procura do nome. do rosto. do homem - ninguém nunca me quis tanto como viver. tanto que a pele fuja. tanto que o corpo correndo me encontrasse - e dizer beleza com a boca torta. e pedir socorro já de corpo morto - sobre o que passa nada quero. sobre o que vem que o tempo cuide. que alguém tome conta e nota. que eu não me importo mais - vou e voou. 











terça-feira, 15 de abril de 2014






 ~
laura makabresku





quis-te tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que eu te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi!

almada negreiros





lembro-me do seu rosto. nenhuma memória me incomoda tanto - o corpo corre monte acima. há folhas de eucalipto. musgo e pernas presas a heras. braço agarrado a elas - desaparece - o homem da minha infância morto num precipício. e a sua filha. de pele como a neve. chora - digo: não fiques triste. outro mundo vos espera - sempre acreditei noutros mundos. paralelos a este. onde é possível ser feliz. estar em paz - a miúda. branca. não me ouve. só às lágrimas grossas. queimando a pele - o corpo. agora estanque num pedaço de horizonte. sonha - queria contar-lhe das constelações mas sei que não iria ouvir - espero que anoiteça e sei do buraco negro. inteiro. para onde o homem da minha infância se atirou. foi como uma estrela que choveu - 




















sábado, 5 de abril de 2014





ann he











Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita
comigo que este tempo ande. Lá fora
são as casas, vive gente à luz de um candeeiro,
o som que nos chega apagado pela distância
só denuncia o nosso silêncio interrompido.
Ajuda-me, faremos o inventário das coisas
menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo.
Fica, não te aproximes, nenhum dia
é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver
as árvores cercando a casa.

helder moura pereira




que alegria nos socorre quando as tardes trazem a chuva para a estação errada. pergunto-me - se ao menos não me doessem todas essas árvores de que somos feitos - nesta primavera nada rebenta. só o peito. e a certeza de que o tempo vai melhorar chega-me pela boca de quem conhece as luas. as nuvens. o sol - nenhuma luz pode permanecer no corpo quando o cinzento dos dias se repete - e é como se subitamente uma tristeza se pendurasse no meu pescoço. a obrigação de a carregar como se a vida disso dependesse - quero um mundo que não há porque nenhum homem o pode criar e já não se fazem deuses como dantes. um mundo onde se pudesse nomear as tristezas - aí minha tristeza. de nome maria. exilava -