sábado, 30 de abril de 2011

















Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

eugénio
de
andrade







. à boca da primavera. verde-água vivo na pele. a dor de não te dar a mão. sorrir. com a boca cheia dos nervos de não te ter. é o futuro. regressa com o vento. às paradas águas de maio. lembro o teu rosto. a pele dos dias vivos. uma saudade cresce no peito. como heras a subir muros. nenhum sonho é nosso. nenhum final feliz. e a nossa história é a certeza que a vida não perdoa.









































Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

herberto helder






o que falta ao tempo é um campo de terra madura onde plantar corpos sãos. corpos onde cresçam nuvens onde cresça céu. nesta tarde lenta. à hora em que morremos. todos os rostos me encontram. mas nenhuma memória me traz a tua boca. nem as palavras regressam. como te espero todos os dias. talvez ainda te plante dentro da memória. cresças como a árvore atrás da casa. todas as casas deveriam ter uma árvore que as segurasse. nenhuma casa devia morrer. mesmo que só. tantas vezes nos braços das árvores fomos felizes. embalados pelo vento. um dia ao cair da tarde. ou noutra manhã de verão.









sexta-feira, 29 de abril de 2011
















Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.

fiama hasse pais brandão






sempre do amor falámos. quando encostavas o coração ao meu peito. cabeça posta na minha. silêncio de mãos dadas. não sei se a verdade é esta. ou se há verdade. ou se há coração ou cabeça. nenhum corpo dos que tenho conhece agora o teu. e é a memória que teima. lança-me no teu sorriso. onde coube o futuro. todo tão grande na boca fechado. para sempre. silêncio. nenhum amor é esse. nenhum. onde procuro o coração não encontra. onde me encontram não está o meu coração.















































Se tanto me dói que as coisas passem

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem


sophia de mello breyner andresen





dizem - as coisas passam - que não passassem as coisas. que aqui ficassem. como quando o tempo fosse morto nos meus braços e dele pudesse fazer a eternidade que quisesse. ao tempo toda a vida escrevi histórias. de adormecer. quando à noite o sono não chegava e os relógios sequestravam o silêncio. quero o silêncio dos dias imensos. o segredo da madeira velha nos ouvidos. a quietude de uma casa vazia. que nenhuma voz se levante. nem um corpo. que adormeçam os homens todos. que o mundo seja a vida suplente que sonhei. uma cidade onde não houvesse gente. que gente faz doer. dos ossos ao coração.














quinta-feira, 28 de abril de 2011





































Um beijo
Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.


ana cristina césar






não sei dizer por que homens o coração passou. se outros homens não foram do coração que não foi. ou o coração não chegou e os homens fugiram. que homens fogem quando o coração é pequeno. o meu. coração. livre. como um pássaro. não sabe. que destino dar às asas. migrar. mais sentido faria não fugir. mas homem foge porque terra não chega. quer nuvens. quer mar. quer céu. não sei dizer com que homens o coração foi. mas voou.












quarta-feira, 27 de abril de 2011
















Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

eugénio de andrade








quero eu dizer: não há tarde em que não te lembre. lembrar-te é dar-te vida. como se viesses do outro mundo teu. onde te meteram. e o verde-musgo das pedras nos teus pés se tornasse. a tua sombra de corpo vulgar. passeia. e fazes ninho e abeiraste da montanha e gritas. eco. a tua voz regressa. por entre os pinheiros. socorre aos pássaros. vai com as nuvens. não me hei-de esquecer. não te hei-de perder. não. volto a dizer o teu nome como quem diz para sempre.









segunda-feira, 25 de abril de 2011

































Nós encobrimos o que é feio, o que é dissonante, o que é áspero – andamos sempre a limpar o mundo de tudo isso. Uns de uma maneira menos violenta, outros violentamente – foi isso que fez Hitler, limpou o mundo. Quando ouço fazer a apologia da beleza e da saúde, fico muito perturbado. Porque é a apologia da “limpeza”, e isso é terrífico. A apologia do poema bonito, a apologia da frase harmoniosa… estremeço. No fundo, atrás disso vêm todas as outras coisas, e vem também a violência. O terrorismo da beleza.
Quase todas as pessoas que praticam isso fazem a apologia disso, e estão sempre a confrontar o que os outros fazem, ou escrevem, com isso, ou o que os outros são com o padrão colectivo. Quem não faz isso é afastado. É segregado, como os anões são segregados, como os surdos, como os mudos são segregados. E o que fica é um mundo que se quer sem mácula. Eu tenho horror à ausência de mácula. (…) A escrita, para mim, não é uma forma de atenuar, é um gesto, e eu queria que cada palavra fosse um gesto e não mais do que um gesto, com a violência do gesto, a rudeza. (…) O outro tipo de violência é quando a própria palavra é a violência do discurso, a palavra não diz a violência: e é ela própria violência. Aí, as pessoas afastam-se, repugnadas.

rui nunes
















- se estiver sol. quando estiver sol. levo-te às terras baldias - num barco vamos. nem que seja de papel. faço-me ao mar de olhos vendados. se tiveres medo pego-te ao colo e canto-te uma canção. - sossega. meu bem - amanhã é o futuro. se partires eu vou junto -