sexta-feira, 17 de outubro de 2014









randy p. martin






















Ponho a mão do lado direito
da face: tapo um olho
e não é metade o que vejo
nem reduzo a tristeza a seja o que for.
E se descruzo as pernas e as volto a cruzar
não muda em nada a minha condição
porque apenas transito o físico da dor
e não a dor em si mesma
se é que se pode pôr as coisas assim.
Vou folheando o meu livro de horas
à procura de luz nas palavras: não há luz
nas palavras.
É. Talvez seja da luz, talvez seja de lá.
daniel jonas










o que sei do mundo é: uma casa voltada para o mar e o teu olhar a dizer-me - está tudo bem. dorme sossegada - nunca acreditei que o mundo me reservasse calma. dias tranquilos de chuva. corpo pousado no ar. olhar disperso entre nuvens - que a vida me desse um descanso tal que. fechando os olhos. ouvisse o mar. o sol. uma árvore inclinar-se sobre as paisagens e o teu rosto voltado para o meu - a felicidade é hoje como abrir o peito e deixar partir o coração. para sempre 



















quarta-feira, 15 de outubro de 2014






elizabeth gadd























Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

ferreira gullar 









tu não sabes mas toda a noite te esperei - era tarde e o musgo crescia. lá longe. nesse bosque da infância aonde sempre regresso nos dias de chuva. sete corvos me guardam - o silêncio dos dias húmidos crescia- verde fora sem esperança. o corpo desaparece. para sempre - quis dizer-te adeus mas na minha boca nasciam carquejas e eucaliptos - para ti guardei lugares tão calmos. nuvens tão novas. tempos vazios. onde a vida fosse tão simples como partir





























terça-feira, 7 de outubro de 2014








ezgi polat
















'há travessias que só se podem efectuar sozinho, sem ajudas, ainda que correndo riscos de ir a pique numa dessas madrugadas de insónia que nos tornam Pedro e Inês em cripta de Alcobaça, jacentes de pedra até ao fim do mundo.'
antónio lobo antunes











simples como acordar de um sonho que não se quis. e esperar pela manhã com a pele toda tremendo e o corpo todo suado. marcas de unhas nos braços. nas pernas. na cara. no mundo - acreditar que esta dor um dia parte. parte com o coração. com o corpo já sem braços. nem pernas. nem cara. nem mundo - e sem olhar para trás. deixarei florestas inteiras. águas selvagens. pinheiros mansos. castanhas cruas. e irei. por dentro da terra. à procura de paz - e tu viverás em memórias mansas - e vão dizer: era uma vez uma mulher tão branca que no seu peito nascia neve e dos seus olhos caía gelo - e toda a tua beleza viverá para sempre 









segunda-feira, 6 de outubro de 2014








elizabeth gadd


















Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua

sophia de mello breyner
















como água dos mares do norte. fria na pele. que treme. que teme. que ouve sereias e piratas. navios com homens sem esperança. sem mapa. sem âncora. sem astrolábio. nem rumo - só uma luz muito forte. por entre nuvens. surge. e a certeza da tua voz dizendo o meu nome como a um sussurro - nunca regressas e o meu corpo tão velho. tão feio. tão perdido. tão feito à sombra. ainda te espera - o meu nome perdoa a tua boca e grita. silêncios tão grandes. tantos. que o corpo inteiro desaparece





















sabina tabakovic





















Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita
comigo que este tempo ande. Lá fora
são as casas, vive gente à luz de um candeeiro,
o som que nos chega apagado pela distância
só denuncia o nosso silêncio interrompido.
Ajuda-me, faremos o inventário das coisas
menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo.
Fica, não te aproximes, nenhum dia
é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver
as árvores cercando a casa.

helder moura pereira


















ao acordar. essa certeza absurda de que a vida é finita. de que o mundo é à toa. de que as nossas mãos nunca mais se voltarão a tocar - e a tristeza dos dias menos óbvios em que nos sentávamos a contar memórias. a fazer promessas. a chorar o mundo - e esta vontade de correr que incendeia o peito. esta força do corpo a tender para o futuro. este não saber onde. como. nem porquê. como se ir fosse o único caminho. como se ficar me retirasse humanidade - quase ser humano. a verdade absoluta do corpo que vai. que parte. céu adentro à procura de ti. em todas as nuvens - onde te escondeste que em nenhum pedaço de nuvem te encontro. que de ti fizeram as tempestades. os raios e os ventos fortes. para que parte do céu te mandaram os anjos - 
































quinta-feira, 2 de outubro de 2014




















































laura makabresku














Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre à água.
fiamma hasse pais brandão











não sabia como era andar perdido. tinha do mundo uma ideia errada. de que os dias só nasciam claros quando o amor no peito. quando a dor passada. quando o tempo inteiro - sobre esperança e luz nunca falava e os dias. atrás dos dias. repetiam-se como as estações nos anos - primavera.verão.outono.inverno - a vida. um sonho antigo que a boca repetia como ladainha. doía. doía tanto que o coração ficava assim tão apertado no peito. que o corpo todo se encolhia até ser assim pequeno. pequeno como pó. que uma rajada de vento levava para longe. para lá das paisagens que o olhar alcançava. longe. onde o para sempre existia - esse lugar tão longe. tão perto. tão dentro. onde ser feliz era o corpo inteiro de riso. o coração feito de luz. a pele quente de esperança. esse lugar existe quando o teu corpo me abraça. tão forte que o meu desaparece