terça-feira, 31 de agosto de 2010
central.
se estivesses aqui provavelmente encostava a cabeça no teu ombro e pedia-te que me contasses uma história. uma qualquer só para entreter o tempo. há anúncios de amores nas paredes, velhos amor, sem nome, vencidos pela lixívia. queria falar-te do amor que agora passa. este que acontece. que este amor, meu, tem o teu nome repetido.
III
porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, ii manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros, dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios, dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um re de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento, a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas, invento, na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento, manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
&. as mãos espalhavam a pele,
cobriam cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário, miragem. invento.
o sol partido em dois. azul, e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento, o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas, horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas, um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava, inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.
veneza, travessia
antónio franco Alexandre
quando olho a pele dos braços lembro-me do teu cansaço. de como encostavas os olhos ao pescoço do mundo e choravas. de como eu tapava o meu corpo com uma manta de lã. quase sorria. e tu choravas e eu quase te dizia que não voltasses. hoje queria que aqui estivesses, ver a noite, ficar só a vê-la dentro do silêncio a esbracejar.até tarde. até ser de manhã e tu seres da terra.
1
Odeio
quem me ama
e os que me procuram
de madrugada
não me acham
2
Se estou bem
é culpa de Deus
se estou mal
a culpa é minha
3
O que
tenho a dizer
grito-o
do alto dos telhados
4
Quem
muita sacha
muita acha
(a viúva
não sabe
da peúga)
5
Não é
com as pernas
que se fazem
as merdas
(é com a alma)
Adília Lopes
domingo, 29 de agosto de 2010
sábado, 28 de agosto de 2010
são as palavras que desaparecem pela pele dentro até ao coração. como dizer adeus às coisas, tantas, e não saber onde é que elas estão. e já no peito não morrem, com ninhos feitos ficam-me nos ossos. quisera eu matá-las de silêncio mas não dizê-las, como não dizê-las se o corpo me pede que as chore. dentro da boca há um necrológio, morre o teu nome. e sou toda a saudade repetida, todo o longe onde não fomos.
não me importa o amor que tenhas
e o amor não se dá nem tem nada para dar
as tuas mãos nas minhas são o tempo que volta
a mover sombras de nanquim, e nos teus lábios
é o sabor a tinta que me atrai.
Ebbro d’inchiostro é mais bonito, quando
ao calor de agosto as bocas se desatam
e as línguas mordem a brancura do linho.
antónio franco alexandre.
Havia uma cidade em espanto linear a cavalo noutra cidade em geometria ambígua, um jardim era metade do outro, em que as pétalas andavam para trás e para diante, com o perfume trocado e o silêncio das cores tremendo no seu erro cheio de alvoroço florido, os arquitectos disseram: é preciso um novo espaço para estas duas pessoas que estão a pensar tanto com o corpo – e numa casa abria-se a porta que vigiava os corredores onde o pólen se acendia e dançava, e de repente a porta descerrava o espectáculo antigo do nascimento da lua num quarto escuro, via-se o que a lua sempre fez para trepar do soalho para o tecto pelas paredes docemente retardadas, era o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados, e alguém escrevia à máquina num dos planos de intersecção urbana, e a frase escrita aparecia com o seu rumor externo noutro sítio, mas agora via-se no meio de uma clareira de silêncio vivo, e ia-se apreendendo a nossa mútua nudez colocada no sentido da frase, nós éramos essa cidade tremendamente posta em uso, em toda a parte estavam mãos em vez de garfos e lâmpadas, e a frase era assim: o amor, as mãos ininterruptas.
herberto hélder
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
talvez amanhã me socorra calmo, entre duas costelas , já depois entranha, já depois não bate e ninguém ouve. debaixo do seio fica, ainda assim, não bater não mata quando a boca fala e a cabeça pensa.estranha. quando o corpo senta e os braços estrebucham. amanhã, talvez, outro dia seja, o dia póstumo, como um dia seguinte. e do mamilo saia já como um enfermo, chora.
(1920)
Segunda, 25 de Outubro (primeiro dia da hora de Inverno)
Porque será a vida tão trágica?, tão semelhante a uma pequena faixa de passeio sobre um abismo. Olho para baixo; sinto vertigens; não sei se vou conseguir caminhar até ao fim. Mas porque sentirei eu isto? Agora que o digo já não o sinto. Tenho a lareira acesa, vamos à Beggar’s Opera. Só que isto paira em mim; não posso fechar os olhos a isto. É uma sensação de impotência: a sensação de não estar a realizar nada. Aqui estou eu, em Richmond, e, como uma lanterna no meio de um campo, a minha luz esfuma-se na escuridão. A melancolia diminui à medida que vou escrevendo. Então porque não escrevo eu mais vezes sobre isto? Bom, a vaidade proíbe-mo. Quero ser um êxito até aos meus próprios olhos. Contudo, este não é o fulcro da questão. É que não tenho filhos, vivo afastada dos amigos, não consigo escrever bem, gasto muito dinheiro em comida, envelheço – dou demasiada importância aos quês e porquês; dou demasiada importância a mim mesma. Não gosto que o tempo esmoreça. Se assim é, então trabalha. Pois é, mas o trabalho cansa-me logo – só posso ler um bocadinho, uma hora a escrever e já não posso mais. Ninguém vem para aqui entreter-se um bocado. Se isso acontece, zango-me. Ir a Londres é um esforço enorme. Os filhos da Nessa crescem e não posso tê-los cá para o lanche, nem levá-los ao Jardim Zoológico. O dinheiro para os meus alfinetes não dá para muito. Contudo, tenho a certeza de que estas coisas são triviais: é a própria vida, penso eu por vezes, que é assim tão trágica para esta nossa geração – não há um cabeçalho de jornal que não tenha um grito de agonia de alguém. Esta tarde foi o MeSwiney, e a violência na Irlanda; ou então é uma greve. Há infelicidade em todo o lado; está mesmo atrás da porta; ou há estupidez, o que é pior. Mesmo assim, não consigo arrancar este espinho. Sinto que voltar a escrever o Jacob’s Room me vai fazer recuperar a fibra. Acabei o Evelyn: mas não gosto do que escrevo agora. E apesar de tudo isto como sou feliz – se não fosse esta sensação de haver uma faixa de passeio sobre um abismo.
virgínia woolf
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava
Quando duas almas, e digo bem,
se enamoram uma da outra,estamos perante um caso fragrante
de romantismo inglês. A princesa,
o dragão e o senhor chapéu de coco:
tanto basta para um drama
em que o remorso é o artista
principal. São assim os infelizes,
não conseguem partir um prato
sem ficar tolhidos pelo sentimento
de culpa. E por isso, sentem eles,
o melhor é estar quieto na berma
do sofá, e ter medo de tudo,
de tudo menos da infelicidade.
josé miguel silva
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
A minha maneira de amar-te é simples:
aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo
Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos
E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração
Antonio Gamoneda
abraça-me. abraça-me muito. só seremos felizes no mundo se nos abraçarmos muito. tanto que a terra ao voltar-se só nos encontre num corpo. e que o corpo não saiba que nome se há-de chamar. preciso de te encontrar para um sorriso, a boca já não sabe o que dizer e, muitas vezes, a língua é apenas a vontade de um beijo.então abraça-me muito, seremos felizes no mundo se nos abraçarmos muito.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
"Yo había sonreido. Nada más. Pero la claridad fue en mi y
en lo hondo de mi silencio
El me seguía. Como mi sombra, irreprochable y ligera
En la noche, sollozó un canto
Los indios se alargaban, sinuosos, por las callejas del pueblo
Iban envueltos en sarapes, a la danza, después de beber mezcal
Un arpa y una jarana eran la música y la alegria eran las morenas sonrientes
En el fondo, tras del "Zocalo", brillaba el río. Y se iba como
Los momentos de mi vida
El, me seguia
Yo terminé por llorar, arrinconada en el atrio de la parroquia
amparada por mi rebozo de bolita, que se empapo de lagrimas"
frida kahlo
Yo pronuncio tu nombre
en las noches oscuras,
cuando vienen los astros
a beber en la luna
y duermen los ramajes
de las frondas ocultas.
Y yo me siento hueco
de pasión y de música.
Loco reloj que canta
muertas horas antiguas.
Yo pronuncio tu nombre,
en esta noche oscura,
y tu nombre me suena
más lejano que nunca.
Más lejano que todas las estrellas
y más doliente que la mansa lluvia.
¿Te querré como entonces
alguna vez? ¿Qué culpa
tiene mi corazón?
Si la niebla se esfuma,
¿qué otra pasión me espera?
¿Será tranquila y pura?
¡¡Si mis dedos pudieran
deshojar a la luna!!
federico garcía lorca
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Quero dizer-te uma coisa simples:
a tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma;
mas que não deixa, por isso,
de deixar alguns sinais -
um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos.
Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto.
São estas as formas do amor,
podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples
também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre
o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória;
e a realidade aproxima-me de ti,
agora que os dias correm mais depressa,
e as palavras ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de mim -
e me faz responder-te uma coisa simples
como dizer que a tua ausência me dói.
nuno júdice
sábado, 21 de agosto de 2010
Gosto da tua boca quando sabe
a chocolate, a vinho tinto de Portalegre,
a mar (é sempre a mesma coisa, tem
de aparecer sempre o mar), pensando
bem gosto da tua boca sempre.
Às vezes a tua boca ri e nada sabe,
ri porque prevê a hora certa da minha alegria.
Também eu mergulho no mar, porém
logo secos ficam os meus cabelos quando
me lembro que hoje é outra vez dia de S. Nunca.
helder moura pereira
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
o senhor Éme partiu esta tarde com o coração à cabeça. estava a observá-lo quando o relógio de parede desatou a correr atrás dele. fiquei sem tempo. sentei-me e vi-o correr. já ao fundo da rua disse-me adeus. pouco depois parecera-me que dera um passo atrás. ainda virado para mim chamou pelo nome todos os pássaros que logo pousaram na sua camisa azul, muito azul. disse-me: eu amo-te. disse-me adeus com a mão direita faltava-lhe a esquerda. as nuvens, àquela hora, passavam tão baixo que ao virar a esquina o coração bateu numa. choveu o resto da tarde.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante
basta um instante e você tem amor bastante
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
amor bastante
paulo leminski
não importa veneza não ser destes corpos. não importa veneza não ser. nem bolonha, que não sendo tem de sê-lo agora para a memória deste dia. quero dizer-te apenas que serás feliz. e não importa que amanhã esqueças que veneza e bolonha foram agora, no momento exacto em que nos rimos. não importa quanto tempo é este que nos separa, se nos separa. que o corpo deitado sabe dos canais de veneza, dita-os de trás para a frente como uma lenga-lenga. e à noite é fácil falar com dante ou petrarca na basílica de são petrónio em bolonha. quero dizer-te apenas que serás feliz.
o senhor Éme voltou esta noite com uma estrela ao colo. contou-me como se atirara ao mar, que ele é o único destino das lágrimas. cambaleava um pouco, o corpo molhado, trazia agarrado às calças um caranguejo teimoso. sentamo-nos numa rocha. quase me abraçou. choramos um pouco. disse-lhe para não fugir, que as fugas são facas no coração. entristeceu-se por lhe ter dito. só mais tarde me falou que no fundo do mar há um céu, outro, que é maior e mais azul e tem mais estrelas. sorri. que havia de me levar lá quando os dias se fizessem curtos. abracei-o. já de manhã disse que me amava, ou não disse e fui eu que o inventei.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
eugénio de andrade
_____________________
O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstrata e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida —
"E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?" —
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos ...
fernando pessoa.
_______________________
Adeus ó pombas
todas iguais ante as muralhas
Adeus veredas invisíveis
que na floresta nos aguardam
Adeus ó barcos à deriva
Adeus canais Adeus guitarras
Adeus ó sílabas da brisa
Adeus sibilas ningas cabras
tantas que a Deus se prometiam
mas só adeuses encontravam
Adeus ó deusas de partida
no meu minuto de chegada
Adeus ardentes evasivas
a ver se um pouco as demorava
Se as demorava ou demovia
de tão depressa me deixarem
Adeus ó portas clandestinas
que ao fim da tarde se entreabrem
Adeus adeus íntimas vítimas
das cerimónias implacáveis
david mourão ferreira.
_______________________________
É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.
miguel torga
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontro
sem que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anosjunto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
ruy belo.
~
conseguem imaginar uma performance com ruy belo, chopin e beethoven.
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
Um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri
di-lo-á decerto com pena mas sem o alívio que eu próprio decerto senti
primeiro ao solucionar de vez esse problema de respiração que a vida é
desde a convulsão da criança que a meio do copo deixou ir leite para a traqueia
até a instantânea atrapalhação do mergulhador a quem de súbito falta o ar comprimido
só dispõe da reserva e lhe faltava tanto que ver no fundo sonhador do mar
depois senti alívio porque às vezes a meio por exemplo da aragem na face
eu pensava na morte como problema metafísico a resolver pelo menos com higiene
se não com dignidade com acerto como mais um problema à medida do homem
Eu estava do lado dos vivos estou do lado dos mortos
o grande problema era saber se me doía ou se não me doía
agora nem sei se me doeu ou não ou fui um mero espectáculo de mau gosto
para a única pessoa encarregada de me ajudar nesse momento
Ninguém a princípio terá sabido que eu morrera só minha
mulher avisada de longe virá e me porá a mão sobre a testa
os demais não não disponho do olhar para me defender
o tempo depressa se passa são trâmites legais até me terem deixado
debaixo do chão bem debaixo do chão sem frases lidas
ou gravadas sem sentimento nenhum
Uns dias depois um pequeno grupo junto a uma grande janela
olhará a neblina da manhã de janeiro
e terá mãos que eu tive para os meus problemas de vivos
Onde eu estive sobre uma mesa com uma perna cruzada
suaves começarão a suceder-se e acumular-se os dias
como cartas revistas linguísticas ou livros adormecidos
despertos apenas no momento fugaz da leitura
A vida será indistinta virá até nós como árvores
rodará em volta como um lençol até cobrir-nos os ombros
Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim
mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso amigo
Estou só e só para sempre e só desde sempre
mas antes por direito de opção. Agora não
Deixaram-me aqui doutor em tantas e tão grandes tristezas portuguesas
e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha juventude definitiva
Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada
pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva
ruy belo
terça-feira, 3 de agosto de 2010
.
ao fundo, ela. o corpo suspenso no arame, o rosto iluminado por uma nesga de luz provinda da porta entreaberta. um pouco acima da sua cabeça um carreiro de insectos, em subida. as mãos estão-lhe acima da linha dos seios, ligeiramente inclinadas para a frente, os pés em estado morto, um equilíbrio que engana o olho nú. quando o suor lhe corre na face as pernas tremem um pouco, abaixo da cintura os ossos fazem um ligeiro movimento, na tentativa de deixar ficar o corpo na posição anterior. os olhos são-lhe dois buracos negros em pele branca, muito branca, demasiado branca. a boca ainda aberta, sempre aberta. não sei o nome dela, queria dizê-lo, mas não há nome que a chame.
"Se pudesse amar, acreditaria no que amasse, e seria alguma coisa, porem o amor é um obscurecimento e ele sente que nasceu com a visão clara e sem crença na luz (a razão ilumina, indiferente ( o sogro dizia-lhe: "você é um racionalista destituído de afectos, irá longe, mas sem acolhimento", "isso não é verdade": respondia-lhe: "amo a sua filha", "quer dizer, respeita as possibilidades que ela lhe oferece", "e não é isso a que normalmente se chama sentimento?", "esfria-me, você esfria-me", " o senhor deve escrever poemas a horas mortas no escritório", "escrevo a horas vivas, horas mortas são todas as suas"."
rui nunes
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