sábado, 26 de setembro de 2009














#nova cidade. novo trabalho. novo perfil. novo rosto. novo acordar. novo sossego.

novo começo.





.não sei quando volto. 











quinta-feira, 24 de setembro de 2009







"Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados."


bernardo soares
















paula rego















da raiz do coração à tona da epiderme,
tudo me dói, de dentro para fora, como se o mundo
me morresse.
e o mundo morre-me demasiadas vezes entre as mãos,
raramente me apercebo da vida que perco enquanto escrevo,
talvez porque me não pertença ou porque é feita
desta estação e dos ramos, quebradiços como braços,
semi-nús, semi-despidos, semi-tudo.
o corpo, este, já está calejado,
podem vir ventos, outros, como estes,
tempestades de sombra, equinócios de morte
que enquanto houver amor tudo suporto.







































# doem-me todos os ossos do coração.


















duvido que te chames ocaso embora assim gostasse que
fosse, e nesta dúvida reside a clarificação de qualquer coisa
impune, como o amor. na superficialidade de que és feito
dou pinceladas às cegas, tento a minha sorte, que de tão
tentada já não vai a lado nenhum, estagnou. o coração é um
membro gasto, que bate automaticamente, mecanicamente
bombeia sangue para todo o corpo e, se não fosse este gesto
repetido, diria que é um membro morto, morto de frio ou
calor, morto de morte ou de vida e é, nestas pequenas
contradições, que se começa a chorar. é o não saber, é o não
estar onde, o fechar os olhos e arrastar o corpo para longe, o
degular de ideias vazias e esperar que reproduzam efeito nos
confins da alma. estamos todos incrivelmente mortos e nem
sabemos, e gostamos de não saber, de habitar a ignorância
de quem nunca recebeu afecto. somos feridos e ferimos de
dentro para fora.





















auguste rodin




















# ah, se ao menos houvesse menos poesia neste corpo!


















da minha janela vê-se uma espécie muito rara de angústia
tem o corpo que não ousei que me fosse
usa o amor como se fosse a origem da sede
e sossega-se contra o peito da alvorada

da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida

da minha janela não se vê mais nada
ouve-se o silêncio contra mim
e chove a morte contra os vidros
por dentro como soa o fim


pedro sena-lino























quarta-feira, 23 de setembro de 2009









penso a solidão da casa plantada sobre a minha íris, enceno a sua morte, lenta, como um incêncio mais interior do que exterior. a solidão dos espaços é indiferente à minha solidão, quase como se de tão aparentemente indissociáveis se unissem em sangue, quase como irmãs. a solidão da casa não choro, não me pertence, e embora lhe saiba todas as estações como se me pertencessem, não sou outono nela. posso ser outono na minha solidão, mas na minha casa não o sou, aqui dentro sou o que quiser ser por fora. subitamente é aqui que aprendo a morrer mais devagar.



































Chamo-me Ofélia. Aquela que não vai conseguir aguentar. A mulher no patíbulo. A mulher com as artérias cortadas. A mulher com overdose NOS LÁBIOS NEVE. A mulher com a cabeça no forno de gás. Ontem parei de me matar. Estou sozinha com os meus peitos as minhas coxas o meu colo. Eu arranco os instrumentos da minha prisão o banco a mesa a cama. Eu destruo o campo de batalha que era a minha casa. Arranco as portas das suas dobradiças para deixar entrar o vento e o grito do mundo. Eu rebento a janela. Com as minhas mãos a sangrar eu rasgo as fotografias dos homens que eu amei e que me usaram na cama na mesa na cadeira no chão. Pego fogo à minha prisão. Atiro a minha roupa para o fogo. Eu desenterro o relógio que era o meu coração para fora do meu peito. Vou para a rua, vestida no meu sangue.





      Heiner Mueller
(http://theresonly1alice.blogspot.com)


























diz-me: os rios nunca nascem mar. e eu penso que não quero ser rio, nem quero ser mar, nem quero nascer e calo-me. gostava de lhe mostrar a sombra dos afectos, o caudal dos gestos, as margens do amor, mas ela nunca gostou de coisas simples e eu sou feito de água. um dia descobrirá que debaixo da pele lhe crescem dores, nas articulações, nos órgãos, da boca ao coração, lentamente, até todo o seu corpo ser o cárcere que já é, e desconhecer-se.
diz-me: está frio. é outono. estou triste, ou o inverso, estou triste, é outono e está frio. eu inspiro as lágrimas à boca dos olhos e fujo, na pressa de fugir perco-me. quero morrer longe daqui, onde os dias curtos não me trazem dores, onde as árvores semi-nuas não me trazem semi-deuses, onde a voz dos pássaros migratórios me grita o amor.


podias ao menos ter-me ensinado a sobreviver à mudança das estações.








Podemos ficar sentados a noite inteira
à espera de um sinal que nunca chega,
podemos num desespero sem nome perder
o gosto de tudo, enquanto o eu permanece
brilhante, estupidamente brilhante,
a sussurrar-nos ao ouvido a desgraça;
podemos, numa lufa-lufa, ir de filme
em filme, de livro em livro, como quem
sem terra procura uma casa, um lugar
a que possa chamar seu, onde tenha os seus
pertences e tempo para rir e tempo para
se aborrecer. Podemos ter pena de nós próprios,
podemos viver.






Carlos Bessa











Caravaggio




















ensinas-me a ser feliz?



















sexta-feira, 18 de setembro de 2009





















.realismo.

























Gustave Courbet








* não sei do amor. 
















quarta-feira, 16 de setembro de 2009





#então dizia-me: chega-te aqui, abraça-me. eu erguia o corpo até ao limiar do seu queixo e, com as mãos dadas ao seu pescoço, beijava-lhe o ombro e adormecia-lhe a ânsia. várias noites a ouvi falar de silêncio, os dentes a morder o lábio inferior, a pele gelada, às vezes voltava-se e ficava a olhar-me como se fosse feito de mar,
às vezes fingia que dormia ou voava, sempre quieta, como se a cama estivesse já tão acostumada àquela posição do corpo que alterá-la lhe causasse dor. tudo nela me inquietava, desde o semblante de pássaro sem bico, ao corpo de pássaro sem asas, tudo naquele pássaro era imperfeito e belo.




#ontem, desci as mãos pelo corpo dentro e fustiguei o coração. é talvez este o dia mais perfeito da minha vida, ou por ser quase outono, ou por ser quase tempestade, ou por ser quase choro, ou quase riso, ou quase vida ou quase nada. é talvez neste quase não estar onde, neste quase não ser, que se constróem as leis do improviso. queria improvisar agora um coração novo, mais saudável, menos triste e só, mais tolerante e falar dele como quem fala de si, a gente já nem reconheço.




# quase sempre adaptava o corpo aos lugares, era como se o corpo fosse de plasticina feito e se moldasse ao banco, à cadeira, à esquina de rua, ao degrau da escada, à pedra do muro, a outro corpo. os corpos são como objectos. quando olho o meu corpo não é a mim que vejo, é ao meu contrário, ao homem que de dentro se fez fora e foi capaz de construir um perfil opaco. gostava de bramir-me os membros, primeiro as mãos, depois os braços, as pernas, mais tarde, quem sabe, o coração. e retumbar depois os sentimentos, primeiro a saudade, depois a ânsia, a tristeza, mais tarde, quem sabe, o amor.




#perguntou-me: quando és deserto?
deixei a pergunta dar a volta à sala e sem vontade de responder, escondi-me. falei de tudo menos de silêncios, sempre tive medo de cair em redondâncias. é a esta mulher que amo, aos seus cabelos quase brancos, à sua tez enrugada, ao amadurecimento das nossas pequenas memórias, desde o tempo em que eramos duas crianças e pensavamos que o céu era um reflexo do mar. ao amor já nada escrevo, deixei de acreditar nele, com o tempo apercebo-me que é tudo tão credível quanto eu. desta mulher esperei tudo, menos que desconhecesse quando sou deserto ou quando sou o mundo. é o mesmo que esperar de mim a vida e não encontrar nada.

















.surrealismo.
























Man Ray









Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.

Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.

Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.

Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?

Fica a loucura. "a loucura que é encarcerada", como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.

Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.


Excerto do Manifesto Surrealista
André Breton







Salvador Dali









René Magritte















# quero um abraço, por favor.



































falava-me da transitoriedade dos afectos enquanto arrastava os pés de um lado para o outro, à procura de um chão talvez. às vezes gritava-me o seu nome mas os gritos das gaivotas não mo deixavam ouvir, ou então era ela que não sabia pronunciar o seu nome. estou aqui já há algum tempo e, com o vagar monocórdico de quem dança uma valsa, ela continua, de um lado para o outro, arrastando os lugares consigo. à tona do peito assiste-se à erupção vulcânica dos sentimentos, uma lava de gestos arremessados por tentáculos esguios, gostava de a abraçar agora. ergue a cabeça, o pescoço chia, está fraca, a cabeça cai-lhe junto ao peito, onde agora lhe namoram breves memórias. apetecia-me gritar com as gaivotas, enviar o meu corpo de encontro a todas estas esquinas, desnudá-la de uma vez, cravar-lhe nas coxas o meu sepulcro e morrer feliz, mas ela não pára, nem com ela nem com a vida.



segunda-feira, 14 de setembro de 2009






















com as entranhas à flor da boca e o coração na casca das mãos correu. a rua, na perpendicular do corpo, chorava os passos, dados de uma só vez. às vezes era com as mãos que subia a rua, às vezes não. às vezes queria falar e as palavras vomitavam-se por entre tripas e sangue, estava a morrer e como este dia parecia, assim à primeira vista, um belo dia para morrer, e como esta rua parecia, assim à segunda vista, uma bela rua para morrer, e como esta alma parecida, assim à terceira vista, uma bela alma para morrer. se morre de amor, não sei, não costumo partilhar-lhe os silêncios, nem sei se é os silêncios que come quando se senta ali, no muro, de boca aberta a ver passar o mundo. e o mundo passa tantas vezes por ela, e ela nunca se apercebe.


























.expressionismo.

















Paulo Rossi Osir




Otto Dix






Lasar Segall




Ernst Ludwig Kirchner















* estou outra vez sem tecto.






















deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
e ser levado da rua cheio de sangue
sem ninguém saber quem eu sou!


álvaro de campos






domingo, 13 de setembro de 2009
























* amo-te,
enquanto o amor quiser.





















haviamos de ter conhecido as mãos um do outro antes delas nos doerem, haviamos de as ter dado, de as ter entregue como, já tarde, nos entregamos o coração. às vezes penso que cheguei tarde, é cedo que costumam acontecer as coisas felizes, outras vezes penso que para chegar não há momentos certos. cheguei e pronto. possivelmente não vinha como quando nos conhecemos, trazia já às costas um bosque de pesadelos, possivelmente assustaste-te com a minha solidão, fez-te medo a minha tristeza. mas quem, de entre nós, não traz consigo uma dor. às nossas dores guardamos tudo, no habitual egoísmo de quem sempre esteve só. eu cultivo a minha dor e tu cultivas a tua, em corpos separados mas num só coração.













pós-impressionismo



















Henri de Toulouse-Lautrec







Eliseu Visconti





















# alguém me disse que a tristeza é um acto egoísta.












Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.




Albano Martins







sexta-feira, 11 de setembro de 2009

















.impressionismo. 













(…) Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados “madalenas” que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara-me imediatamente indeferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contigente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Senti-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? (…)

marcel proust






edgar degas







édouard manet











à antecipação de nós
regresso.
vou sendo feliz assim,
penhasco sobre penhasco,
a ver cair a paisagem dentro
do mundo.
vou sendo feliz assim
embora me doam todas estas coisas
que cortam pela raiz o horizonte
e a dor, esta, seja tão forte
que abra paredes e chão
e quebre asas.



















* doem-me hoje todos os ossos do coração.














Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.

jorge de sena











quinta-feira, 10 de setembro de 2009




















Esses mortos difíceis
Que não acabam de morrer
Dentro de nós; o sorriso
De fotografia,
A carícia suspensa, as folhas
Dos estios persistindo
Na poeira; difíceis;
O suor dos cavalos, o sorriso,
Como já disse, nos lábios,
Nas folhas dos livros;
Não acabam de morrer;
Tão difíceis, os amigos.



eugénio de andrade







Oui c'est pour moi, pour moi, que je fleuris, déserte.

Mallarmé

























lá ia ela, rua abaixo, rua acima, como sombra calcetada dos poetas. no rosto jazia-lhe um poema defundo, desses que se escrevem a morrer, por dentro ou por fora pouco importa. arrastava o corpo em vendavais, ora depressa, ora devagar, até que desatou a correr e eu desatei-me atrás dela. é esta a última memória que lhe guardo: abatia sobre o rio o rosto, o corpo cansado inerte, apoquentado, como se tivesse acabado de morrer e não o soubesse; algo inquietante. ainda hoje por ali a vejo às vezes, um modo de correr como se andasse para trás, um corpo difícil, desses que se olham uma vez e se guardam para sempre.





















* quero um pedacinho de céu capaz de acompanhar o meu vôo.











eram seis da manhã quando ela se veio encostar a mim, o corpo gelado. tremia-lhe o coração dentro do peito e eu com as mãos cerradas rente ao corpo não lhe dei abrigo. o meu corpo é um cemitério de esperas inúteis e ela estava tão só, tão só e tão desesperada que me devolvia ao deserto de onde tinha escapado. foi então que se abraçou a mim como se nada mais houvesse para dizer, como se as palavras fossem trovoadas de afecto; depois pôs-se a chorar e sentou-se na cama. a tua memória é persistente como o meu amor.
























Se caminhasses por uma planície, te esforçasses por avançar, e, no entanto, os teus passos te levassem para trás, seria desesperante; mas como tu sobes uma ladeira íngreme, tão íngreme como tu próprio visto debaixo, os passos para trás só podem ser causados pela natureza do terreno, e não deves desesperar.

Franz Kafka
















todos os caminhos vão dar aos teus braços.






incrível é decerto o modo como desce a rua. perde-se à berma das pernas a sombra dos candeeiros da cidade que, como morta, assiste ao seu velório impaciente, como que a desejar que lhe tapem rápido a cova. talvez por ser pequena, e um pouco gorda, engasga o caminhar todo nos dentes e não diz coisa com coisa, pobre coitada. há quem me diga que é órfã de sentires, há quem me não diga nada, mas ninguém, como ela, me fará sentir o deserto à tona da pele como se de areia fosse feito o coração. por isso me declaro culpado pelo seu homícidio, talvez por pensar que seria breve, não duraria mais que a eternidade e, apesar de tudo, fiquei certo de a ter morto antes de a matar, pelo menos foi o que ela me disse.













* chego a casa e, realmente, já cá não estás.






terça-feira, 8 de setembro de 2009








Edvard Munch






(…) Rio e reflexo – por afinidade metafórica posso passar de um a outro, levado no mesmo fluido que num só tempo é gás e líquido. E então melhor eu chego a entender que o sistema paralelo dos espelhos se vai deslocando ele próprio, como acompanhando o correr das águas. Entre as chapas do cristal, o reflexo passeia-se, enche-se e destroi-se, a todo o momento é outro, com a virtude heracliteana das águas.

No momento exacto em que, na distância fictícia onde, perdido o limite na expressão das leis da física, a imagem não é mais visível – nesse momento, também o rio atingiu as águas de um mar que o recebe. O rio deixou de ser quando o reflexo deixou de existir. E o poema apareceu. Apareceu destruindo-se. (…)

josé-augusto frança.

na rua do lado: dois cães, de lombo pesado, passeiam duas dores mais ou menos semelhantes. já nesta rua o velho adormece ao som de seis pés. do cimo do prédio ela inclina-se, o pescoço a anunciar a queda. de súbito, por diante da transparência do semblante, o latido urgente, como se ambas as ruas se inquietassem com um futuro próximo. ontem era tempo de ser hoje, de hoje em diante já nem ontem era tempo. conhece, decerto, tão bem o tempo que o abandonou, algures entre a retina do olho direito e a pálpebra do esquerdo, conhece, decerto, tão bem a vida que a matou num breve bater de palmas. às vezes passeia a solidão do seu corpo pelas duas ruas, pelos dois cães ou pelos seis pés, ninguém sabe, só a vêem quando a noite desce sobre o parapeito da janela, onde, morta, vem dar de comer aos pombos pela manhã.

domingo, 6 de setembro de 2009




















de um olhar...

























ONTEM COMECEI
[Heiner Müller - Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael]


Ontem comecei
A matar-te meu amor
Agora amo
O teu cadáver
Quando eu estiver morto
O meu pó gritará por ti

























é no teu nome que todas as coisas têm sentido, nas quase vogais ou quase consoantes ou sem quase nenhuma delas; é no teu nome que subsistem as palavras, que se alimentam silêncios e se desertificam gestos. o teu nome está estático, sobre o meu pousado, à espera.



































não sei se corte as veias ou as deixe crescer!




sábado, 5 de setembro de 2009














paula rego








falamos por cima das palavras, os gestos condensados junto ao corpo, há nos membros (inferiores e superiores) várias feridas, dessas que duram a eternidade, se ela for tão absurda quanto elas. a inexistência inebriante de vocábulos capazes, a não visão dilacerante dos gestos que se acumulam entre as artérias e as veias, recheados de sangue coalhado até ao interior do coração, é isto que absorvem as horas, esforcadas à raiz do corpo, longe do silêncio comprometedor que nos sufoca. se assim fossem todos os momentos também de nós se fariam desertos gélidos.









* queres casar comigo?
















Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral de horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome – essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.

fernando pinto do amaral









sexta-feira, 4 de setembro de 2009









ah, como quero
falar-te do crescimento súbito de um
coração apaixonado
e não sou capaz!









pablo picasso.







olhas-me como se esperasses um grito,
o coração envolto numa película transparente.
olhas-me as mãos envoltas no corpo,
dado como morto,
dado.
falas-me com a voz travada entre parágrafos,
soltos.



o poema fala das sombras da vontade, à sombra de dúvidas persistentes como esta.









ela pergunta-me: o que queres fazer?
eu respondo-lhe: estar tão atento que tudo o que aconteça seja, mesmo remoto, um seu sinal.
ela diz-me: como deves sofrer
e eu odeio-a, porque vive na vigilância da minha dor, moldando-se à sua ortografia.



rui nunes.







quarta-feira, 2 de setembro de 2009


















tenho medo de perder o tempo de ser feliz.
medo de te perder.










fazia nós no outono. o eco genital de Deus a abrir avessos. um
sangue muito branco falava na água da pele. é aqui o meu corpo,
perguntei, mas deste lado da morte ninguém respondia.
árvores todas caíam os braços. o deserto escorria no lugar da pele.
um lençol cheio de silêncio respondia pelo mundo. é aqui o meu corpo,
perguntei, mas deste lado da morte ninguém respondeu.
o dia não sabia se existia. uma canção de barco abria feridas no
tempo. as janelas diziam dezembro, dezembro, e a primavera tinha sido
ontem por fora. é aqui o meu corpo, perguntei, mas deste lado da morte
ninguém responde.


pedro sena lino










pablo picasso