sexta-feira, 28 de outubro de 2011












dusdin condren











A pele era uma chave, outras o mundo
decerto encontraria, mas agora
das portas que, depois
de arrancadas às casas e atiradas
ao mar, foram fechadas para sempre



luís quintais









lembro-me da raiz húmida das árvores onde nasciam cogumelos. e os bichos escondidos na terra. e o tio zé silva com o ouvido quase entupido de cera. ou de silêncio. sorria - na minha vida não conheci tempos mais frios. a chuva grossa caía toda a noite e o telhado vergava pela força do vento bravo - a avó corria. da sala para o quarto. do quarto para sala. com baldes e bacias e alguidares. queria apanhar a maior quantidade de água possível. para não apodrecer o soalho ou os móveis - eu à lareira. muito sentada. sossegada. à espera que alguém me chamasse para correr o mundo - sempre gostei de correr.









terça-feira, 25 de outubro de 2011



































É simples a separação.
Adeus.
Desenlaçado o último abraço, uma pressa de dar contas um ao outro.
Já não há gestos. O derradeiro (impossível) seria não desfazer o abraço.
Pressa de cada um retomar o outro na teia lenta da remembrança.
Não desfazer o abraço. Ficar face encostada ao niagara dos cabelos.
Sobram fotografias, voz no gravador, um bilhete na caixa do correio. Sobra o telefone.
Tensão - telefone. Experimentada. Sofrida.
Tensão - telefone. Possibilidade de voz não póstuma.
No gravador, voz de ontem, de anteontem. De há anos.
Sobra o telefone. Mudo.
Retininte?
Sobrarão as cartas. Sobra a espera.
Na teia lenta da remembrança, retomo-te em memória recente: na praia de ternura onde nos enrolámos e desenrolámos desesperados de separação.
Sobra a separação.

alexandre o'Neill












a avó tinha essa ternura tão sincera e pura no rosto. como não sei se haverá em outro qualquer rosto. ainda que tão bonito como o seu . a avó chama-se valentina e ri e salta e chora e espera à porta por dois braços tão grandes como os meus - desapareceu faz tempo. faz dezembro. faz dezoito desse mês onde é natal. e onde não deveria desaparecer ninguém - estou triste por isso e por outras coisas mais. que não vale a pena nomear - tenho tanto direito à tristeza como ao voo - a avó tinha esse jeito maroto de me pegar ao colo e me lançar ao ar e me deixar cair tanta vez na cama - a avó não está. a avó fica.




















lukasz wierzbowski








No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

josé saramago










o futuro. curioso. somos nós - que nunca respiramos o ar certo. que nem sabemos se existe ar. se é certo respirá-lo - somos nós por ser nosso o tempo todo. de ser feliz. de levar terra à boca. criar no coração - sei que nos esperam outras árvores noutras bandas. músicas alegres. pássaros mais livres - um dia. a eternidade será nossa pela intimidade que construímos e não vale não acreditar. não vale. rio -




























elena kholkina








Se me cai a mão, o pé.
A atenção na água.
Penso: o mundo é húmido. Não sei
o que quer dizer.
Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa
como não saber nada.
É ser puro, existir ao cimo.
Atravessar tudo na noite despenhada.
Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água,
da carne.
Como para cantar nas barcas.
Morrer, reviver nas barcas.

As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.

herberto helder








penso que talvez o mundo se dobre inteiro em si mesmo para ver passar o futuro. ou talvez seja dos meus olhos. cansados de ver passar as coisas - penso que tenho medo de deitar terra à boca. nenhuma palavra boa ali cresce. nenhum silêncio puro. nem nada. só a triste certeza de não haver nenhum papel meu no mundo da terra - acreditava que as árvores cresciam ao contrário. e o que pensavam serem folhas afinal eram raízes. e os ramos comiam ar. e o ar comia as árvores que secavam em tempo frio - também como eu as árvores viram partir o mundo. é por isso que o deserto não tem árvores. é seco como as terras quentes onde o mundo desaparece - quero dizer-te que ando triste. não por isto ou por aquilo. mas simplesmente por ser outono e chover. e eu adoro a chuva mas ainda não tive oportunidade de estar com ela - tenho andado tão serena e lembro-me de saber que partiste neste mesmo estar. quieta. porque amanhã é outro dia. e todos os dias são amanhã no futuro. se acreditarmos nele -














domingo, 16 de outubro de 2011











Photobucket
marija mandić








Apetece-me desenhar o sol a sorrir. Apetece-me desenhar uma menina ao lado de uma árvore grande e a menina ser maior do que a árvore. Apetece-me desenhar uma casa com uma varanda e na varanda flores de caules compridíssimos, até ao alto do papel. Apetece-me desenhar um homem cheio de botões no casaco. Apetece-me desenhar seja o que for em vez de escrever esta crónica. Vou começar um livro em abril, no dia oito, e dá-me medo começar um livro, passar dois anos, a treze horas por dia, naquilo, a acordar com ele, a adormecer com ele. Apareceu-me o título logo, coisa nova para mim, andava eu a trabalhar no plano, que são quatro folhas de papel de agenda cheias de gatafunhos e setas, a maior parte dos quais ilegíveis. Aliás não é um plano, antes coisas dispersas que talvez se condensem. Mas depois o livro em si não terá nada que ver, ou pouco terá que ver, com os gatafunhos e as setas. Serve para ir habituando a mão, agora destreinada, a tropeçar no papel. O meu material são cores, imagens, sons, um ou outro nome, tralha ao acaso, farrapos. Faço-o de insignificâncias que crescem e se vertebram a pouco e pouco segundo leis misteriosas. Depois desfaço. Depois faço de novo. Depois limpo. Depois torno a limpar. Depois acabo e nunca mais o quero ver. Estes últimos tempos tenho lido. De tudo, por puro vício, e sinto-me desocupado, inútil.

antónio lobo antunes







abria mão de tudo o que tenho e do que não tenho para ter um espaço. perfeito. onde construir uma família como a tua - com mesa e pão e gente dentro - fazia um sonho. desses que à noite sonhamos e que carregamos pela vida por nos fazerem tão felizes que - que nem sei como dizê-lo. um dia talvez aprenda - por que crescem as árvores. ou quantos pássaros vivem no céu. serão tantos como avós - invento uma família como a tua. todos os dias de manhã. por me cheirar a cevada





















dusdin condren






Pachos na testa
terço na mão
uma botija
chá de limão
zaragatoas
vinho com mel
três aspirinas
creme na pele
grito de medo
chamo a mulher -
ai Lurdes Lurdes
que vou morrer
mede-me a febre
olha-me a goela
cala os miúdos
fecha a janela
não quero canja
nem a salada
ai Lurdes Lurdes
não vales nada
se tu sonhasses
como me sinto
já vejo a morte
nunca te minto
já vejo o inferno
chamas diabos
anjos estranhos
cornos e rabos
vejo os demónios
nas suas danças
tigres sem listras
bodes de tranças
choros de coruja
risos de grilo
ai Lurdes Lurdes
que foi aquilo
não é a chuva
no meu-postigo
ai Lurdes Lurdes
fica comigo
não é o-vento
a cirandar
nem são as vozes
que vêm do mar
não é o pingo
de uma torneira
põe-me a santinha
à cabeceira
compõe-me a colcha
fala ao prior
pousa o Jesus
no cobertor
chama o doutor
passa a chamada
ai Lurdes Lurdes
nem dás por nada
faz-me tisanas
e pão de ló
não te levantes
que fico só
aqui sozinho
a apodrecer
ai Lurdes Lurdes
que vou morrer.

antónio lobo antunes







às vezes em silêncio desenhamos o espaço perfeito para fazer crescer o coração. nenhuma ternura haverá no mundo que ali não esteja. pura. no simples gesto de o ver crescer - e como a um homem também ao coração lhe falta o sonho - às vezes só no silêncio as palavras ganham sentido. ou nós mesmos dentro delas existimos. que até lá não somos senão palavras que poucas bocas dizem - o nome que trazemos vai connosco pela vida fora e nunca nos abandona. será o único. assim mar serei para sempre em qualquer boca que saiba dizer tanto silêncio.













domingo, 9 de outubro de 2011












dusdin condren


Eu vejo a noite brilhar
Linda como a minha fada
Sinto o coração palpitar
Por esta menina Amada

Desço a ladeira da rua
Só para a ver passear
E penso: ai, ai, ai meu Deus
Porque, meu amor, desdenhar?

E brilha, e brilha como a Lua
Deusa mais bela, meu bem
Tua beleza em forma crua
Faz os outros te quererem também

Te vejo todo santo dia
Com seu vestido cor de anil
Passando da minha avenida
Vi um feixe de luz que se abriu

Queria te chamar "Querida"
Mas a querida fugiu
Levou toda minha vida
Com meu coração que partiu

Algum dia ainda vejo o sorriso
Que mostra antes de anoitecer
Quando teu corpo é abrigo
Tento não mais perecer

Eu juro que juro por Deus
E em tudo o que eu digo
Que os meus olhos são teus
Onde tudo é proibido

E se já desfaleceu
Aquele meu ombro amigo
Eu juro que juro por deus
Eu quero também ser querido

Confesso que eu pensei
Que tudo estava perdido
Mas foi aí que lembrei
Eu tenho sonhado contigo

Triste com o que imaginei
Eu sigo com o resto omitido
E o amor que eu ludibriei
E só um amor iludido.

samba pra joana
clara affonso & joão alves




às vezes no escuro. em silêncio. dormes. como uma andorinha que apanha uma corrente de vento forte para as áfricas. e assim adormeces nas nuvens. sonhas - não há continentes quando a noite volta. nem horas. e que é do tempo de ser primavera. partiu-se - é tarde e outono e o tempo não volta. muda. até as árvores são só de passagem. como o escuro. ou as andorinhas. um dia partem -










terça-feira, 4 de outubro de 2011


















nicolas sisto
















A persistente solidão. Nada veio mudar isso.
É madrugada. Estás recolhido no mais profundo sono.
Tens essa virtude antiga de sair do corpo e caminhar pelo ar,
flutuando, celebrando a primeira luz que desponta.
O teu corpo está submisso. A tua alma voga,
mas parece querer despenhar-se.
Do teu corpo brotam pássaros azuis. Perseguem-se,
brincam junto ao tecto, gritam. É a vida
que se esvai. Desde o início que é assim.
A persistente solidão da tua morte que se prolonga.
Nada veio mudar isso. Nem o que te atemoriza:
o diverso da natureza, as imaginadas formas
que descreves, os fetos gigantes, uma outra glaciação
sepultada sob a casa, esta tristeza que se acerca
do teu sono. Progrides pelo quarto. Pressentes o mundo,
esse palco de fogos. Denuncias o visível. Observas o teu corpo.
Pássaros azuis brotam de ti no mesmo sonho de todas as noites.
Trazem-te as memórias que subsistem ainda,
a pouca vida que te resta. Recordam-te a infância:
um país de migrações e fugas, de enigmas
em que descrês, o que te arrasta, o que te magoa.
Recolhes as cinzas dos teus dias, as que se espalham
pela violência do voo, da breve ficção enunciada.
A persistente solidão desde o início. Desde o início, a tua morte
e este movimento de ligar as máscaras
que se soltam do teu corpo adormecido.
Tudo regressa à normalidade, à tranquilidade do teu sono.
A luz desponta inteiramente. Ergues-te
para o pressentir da embriaguez e da simetria.


luís quintais












devia começar por suscitar o interesse do hipotálamo em algo menos neutro - e então depois talvez o coração percebesse mais destas matérias estruturantes. que a vida não ensina em palavras - entro em casa e penso: glaciar - só mais tarde percebo a quantidade de abismo que carrego. como ando cansada e entro aqui como quem sai do mundo - só mais tarde - digo que ainda é tarde para dar ao hipotálamo o verdadeiro motivo. ainda que aparentemente ele o apreenda. de querer isto. que a razão sossega. que o corpo está gasto. que os dias podem ser outros e o tempo pode. evidentemente. voltar para trás - é absurdo: constato - talvez amanhã. por ser feriado. a cabeça impluda -










segunda-feira, 3 de outubro de 2011














nuno brito lopes


















"às vezes sorris, às vezes gritas,
às vezes caminhas sossegada pela casa.
às vezes acordas com o rosto no meu braço,
às vezes fere-me no sono o teu joelho.

já te observei sentada à beira mar,
contigo andei pela clareira das florestas,
peguei-te na mão e fomos ao cimo das montanhas.

A chorar estiveste deitada nos meus braços."

joão camilo













às vezes só o coração não dorme. e nas peles rugas ficam crescendo. como se o corpo sentisse falta e não dissesse. por não lhe ter sido dado o direito à fala - tantas vezes suspenso o osso dói de encontro ao intelecto. por não sentir. o corpo teu - é quando adormeço e penso ser o teu peito onde eu encosto a cara.