quinta-feira, 31 de março de 2011
















Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava




ruy belo







- difícil é dizer-te que eu sei que há sol. que é primavera. que as flores são paisagens. que a saudade é só um raio. que atravessa o peito e arranha o coração. e sei que todas estas coisas só o são dentro da minha cabeça. ou do meu coração. e que as mãos trémulas e os olhos turvos não encontram nada. e sei que tudo isto é quando eu sou. este poço de água límpida. afastado da margem é fácil imaginar como será o fundo. perto o céu não faz sentido. porque o céu como o conhecemos é longe. e todas as coisas de longe nos parecem outras. difícil é não ter-te dentro das águas. sentires que as nuvens são na pele como a passagem dos dias lentos. que os outros que eu sou no fundo são como fetos. -
























Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa


sophia de mello breyner








as coisas simples são as que doem mais. dizer-te bom dia. sorrir. fechar os olhos. correr com os braços atrás das costas. no peito o coração não sabe das palavras. só o silêncio dentro. outros lugares onde o corpo pudesse descansar. um tronco de árvore. uma nuvem baixa. uma voz que volta .de longe. amor. regressa. uma casa plantada nos baldios. ao fundo o rio e o teu corpo semi nú nele. as tuas costas brancas. frias. trémulas as mãos ao teu encontro. à frente do corpo um redemoinho de ervas. sorris. a água cobre-te o corpo. vais para longe. onde nenhum corpo te alcança. ninguém sabe de ti. água. mar. vento ligeiro. terra fértil. todos os pássaros aqui vivem. primavera. as flores crescem. de ti não sei. dói.










segunda-feira, 28 de março de 2011

































picasso



















Ter um barco que percorra distâncias incríveis
Saber remendar um sapato


Encontrar um amor
Amor de verdade
Ser vento, ser luz, fogo ou carvão


Tudo, tudo, tudo
Menos esta ratoeira

patrícia galvão






tenho às vezes esta tristeza. cresce. uma ternura que não esquece. suave. atrás dos dias. outros. um dia. depois da chuva. conto-te uma história feliz. de uma menina princesa pequena de olhos enormes que acreditava no mundo. um dia. hoje não. talvez mais tarde quando o corpo se deitar à noite. de silêncio rasgar os meus segredos. quero dizer-te do vento. das flores. das silvas. depois amoras. maduras. nos muros. a natureza. é da minha natureza esta tristeza de olhar dentro de todas as coisas. esperá-las morrer. deitar o corpo à terra. não penses que me esqueci. de ti. dos nossos dias. quero-os tanto como tu. mas este tempo. esta tristeza. tenho saudades do que nunca tive. um abraço. um sorriso. um dia falo-te de amor.



































e houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

herberto helder









não tinhas olhos. lembro-me. chegavas de madrugada. falavas de sonhos. ou pesadelos. como de costume com a boca de quem é silêncio. sentavas o corpo. acordavas o coração. adormecias a pele com canções ridículas. de amor. dizias. não tinhas peito. os ossos eram-te luz de dia. ou noite. fria. contavas-me da vida. gesticulavas. a pele fechada num quarto semi-vazio. só tu e eu. duas cabeças pendentes para o lado do sol que nos custa menos.














domingo, 27 de março de 2011

























Escuta, escuta:
tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei,
não vai salvar o mundo,
não mudará a vida de ninguém
- mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco mais.
Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

eugénio de andrade










quero dizer-te coisas tão simples como o coração procura água ou contar-te do céu por onde os pássaros regressam. que nunca vi. nem ouvi. outra boca. tão bonita como a tua. assim parada a olhar-me como quem beija o silêncio. ficou-me ontem a memória presa ao teu sorriso. um sorriso de ruas inteiras. ruas pintadas de março. com horas mais longas por ser primavera. outras coisas direi quando já for agosto e o teu sorriso cair com as flores de março. secas pelo sol. por agora só o teu nome chama a minha boca. na memória da tua.
















sábado, 26 de março de 2011















Há bocadinho fui espreitar à janela e estava uma rapariga lá em baixo, à chuva. Isto às onze da manhã, a rua deserta e ela imóvel diante da agência de viagens, sem gabardina sequer, à chuva. Cabelos curtos, sapatos de ténis, os braços ao comprido do corpo, sozinha como uma estátua. Não volto à janela porque não quero encontrá-la, parece acusar-me de uma falta que desconheço, afigura-se-me um remorso vivo. À chuva. Não acaba, este inverno, esta solidão magoada, desconfortável. Faz três anos andava eu à brochinha com o cancro, sangue por todos os lados, a emagrecer, a sentir-me mal, a teimar que era uma bactéria qualquer que trouxera do México. Guadalajara, Guadalajara: deram-me a chave de oiro da cidade: está lá para dentro, no seu estojo, numa gaveta de armário. A chave de oiro de uma cidade não abre nada a não ser portas interiores: e para além das portas interiores quartos vazios na sombra, cada qual com a sua rapariga à chuva que aliás agora parou, veio uma suspeita de sol. Não tarda nada o sol vai-se e a chuva recomeça. Até quando? Dá ideia que para sempre, nunca mais vai cessar de chover. E a rapariga ali quieta, não à espera, não por teimosia, ali apenas, se calhar para sempre também. Vinte, vinte e cinco anos, sozinha.


antónio lobo antunes














quando chove pergunto: ainda chove. ninguém responde. nenhum eco acode à paisagem para mo dizer. amor. ainda chove. ainda aqui estão as nuvens. ainda assim. fico. ninguém. só o silêncio. a pele reclama pelo teu corpo. o teu nome na minha boca à espera. todos os dias quando chove. um homem é um barco. um barco na terra. no céu. no peito só o coração. em silêncio diz que chove.












sexta-feira, 25 de março de 2011

























Queres um cigarro? - pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho bâton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica - eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?

herberto helder







ela respira. a voz está já tão morta. o corpo todo tão afogado. a pele em água. quando se volta não há regresso. em nenhuma porta ninguém a espera. ela não sabe. se soubesse não adormecia assim a noite nos lábios. como um sussurro. tão alto que acorda a rua. tão quieta vai a rua e ela. silêncio. só mais tarde no lugar do coração o mar. alto e bravo. mar. não calmo e manso. ela respira. um dia destes. fraca memória. cabeça perdida. coração na boca. porque as memórias não morrem. são como sorrisos. e nenhum outro país saberá dela.




























Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

mário cesariny




são assim as ruas. duas lâminas. dois pedaços de vidro. três caminhos cruzados. ninguém me espera. em nenhum lugar. ninguém à espera. nenhum rosto familiar. nenhum sorriso. uma nesga de sonho voltado para sul. com o sol da manhã a doer-me nos olhos. amanhã. não hoje que o amor é cedo. amanhã desenho um corpo de encontro ao meu. um abraço. sob o olhar atento das silvas. onde mais tarde crescerão amoras. amanhã o silêncio. hoje não. que trago o coração tão pequeno no peito. e não posso chorar. não.









quarta-feira, 23 de março de 2011











Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

eugénio de andrade







não podes morrer avó. que é primavera e as estrelas crescem. não podes morrer agora. de novo.como aquela senhora. de cabelos brancos e olhos voltados para o mar. era dezembro. lembraste avó. era dezembro e o corpo foi-me trazido num caixão. e não podes morrer agora que o tempo vai quente. e quentes estão as pedras. e ergueremos o muro. e desceremos até ao rio. mostrar-te-ei como cresceram as árvores que plantamos. não podes morrer agora que é quase abril.e de branco caiaremos as paredes da casa. e a casa abrirá então as portas todas ao sol. quero sentar-me de novo à tua beira. encher de lenha o forno. esperar a cevada ferver. nunca to disse mas fazes a melhor aletria do mundo. e digo mundo porque sei que o teu mundo vai até frança. o teu mundo. não o meu. que sempre foi a ibéria como o daquela senhora que me morreu em dezembro. e era minha avó como tu. e como tu esteve sempre tão perto e quase a partir. nunca falamos de flores. e eu sei como preferes chocolates a flores. como dizes tão mal das luas. tão cedo deitas o corpo à luz. não podes morrer agora que eu não sei se aguento.





































zeynep kayan





"Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada."

herberto helder







há pessoas que não sei se existem. pessoas que trazem à cabeça folhas de tamanho de corações. pessoas que de longe me parecem árvores. grandes árvores verdes. outras grandes árvores semi mortas. não sei falar-te dessas pessoas que por mim passam em dias como hoje. dias grandes. dias atrás de outros dias semelhantes. deixei o corpo ontem. fazia frio. deixei o. hoje faz falta tê-lo. como adormecer vento na pele. não dá. nem faz sentido. nem sinto nada. nem amanhã. porque não existirão mais dias. outros dias onde deixar o corpo. tudo foi ontem. tudo já cá não está. e eu queria ter o corpo agora. para ir com o vento à procura de água.











terça-feira, 22 de março de 2011















ver-te é como ter á minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente

é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado.

ruy belo





parece ás vezes que as sílabas ditas ao contrário fazem mais sentido. é quando o corpo se coloca perto do sol. quando a luz bate nos olhos. o teu corpo mente ao meu. não é inverno. já não. nenhuma árvore seca à borda da pele. só na tua boca se demoram as sílabas. presas à língua. tinha para os teus lábios preparado uma cantiga. com palavras fáceis de dizer baixinho ao ouvido. teria de ter pelo menos o mar o sol o calor o mistério dos dias calmos. parece às vezes que os dias calmos chegam quando não esperamos. quando o peito se fecha. e uma nesga de luz irrompe. quero acreditar em ti. às cegas. percorrer as palavras com os dedos todos. nenhum lugar soube tão bem de nós. espero. talvez mais tarde me digas com que sílabas se diz mundo. ou amor. ou nada.











segunda-feira, 21 de março de 2011

































cecil beaton




Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser atá ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.


ruy belo







tenho estado bem. nenhum pedaço de terra cobre agora o corpo. só o cheiro a acácias. o vento. suave. a tua mão segura o meu pescoço. não saberia morrer. não. sem te conhecer. assim. nenhum nome sobe agora a rua. deserta. a pele estranha não ter medo. nenhum. a rua passa devagar por nós. vamos tão sós. à frente vai o coração de olhos vendados. cheira a vento e a chuva miúda trazida dos sonhos. o teu corpo desaparece com o vapor de água. nenhum barco é do rio. só o silêncio. breve. de encontro ao peito. o tempo passa e a noite nunca termina. sempre o mesmo dia. aquela hora. aquela infância.

























domingo, 20 de março de 2011
























zeynep kayan








direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir

ruy belo








se algum dia voltasses com a boca cheia de árvores e ao peito um tronco-coração. se por mim chamasses como às flores março. e o meu nome fosse no vento o ondular das paisagens. montanhas altas a perder de vista. um sorriso de águas paradas. que os lugares te conheciam pelo andar como as minhas mãos a tua pele. que o tempo encontrava sempre no teu corpo o lugar perfeito para atracar. e nenhum barco estaria seguro entre os teus braços enquanto nos olhos te nascesse a terra. fomos uma dessas memórias que o corpo não esquece. uma palavra repetida. uma boca que não fala. silêncio. se algum dia voltasses e fim de março não fosse.

























Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...


clarice lispector









nestes dias não falamos muito. encostamos a cabeça a um braço ou a uma perna. pele. e fazemos de conta que o silêncio existe noutro lugar. noutro corpo. tão longe como o mar. tão nosso como a água. ou o sal. na cabeça memórias reencontram rostos. abrir as mãos e deixar crescer-lhes raízes. fundas. raízes de árvores grandes. onde pássaros farão ninho nesta primavera. como corações. os pássaros chegam esta noite com o vento quieto nos olhos. também tu. pela manhã esquecer que dia é este. que tempo faz no peito. que coração me bate. esquecer.








sexta-feira, 18 de março de 2011



























de luís belo








ficávamos até tarde. falavas-me de amor. depois ias recostar-te ao travesseiro. camisa de dormir amarrotada nas costas. sorrias - o amor é esperar e tu não sabes esperar - não esperava que terminasses as frases. interrompia para te dizer que sei esperar. tinha a certeza. hoje não tenho. digo-te que não sei que fazer das ruas onde o amor não chega. quero sentar-me à tua espera. outras vezes era o teu sorriso que me visitava durante a noite. por frio calor ou dor. de olhos muito abertos à madrugada. as tuas histórias eram verdade. com rostos que existiram para mo mostrar. pessoas que regressam dos mortos num barco de papel para me dizerem que eras a melhor contadora de histórias que a terra conheceu. - um dia o zé fernando caiu junto ao alpendre. uma largata mordeu-lhe um dedo. se o quisesses ver a correr tapada fora. nem viu. caiu na poça. andou para morrer afogado - não sabias nadar. não. nunca to ensinei. meter-te na água era como tirar peixes dela. quero mostrar-te os oceanos. todos os peixes. de todas as cores e feitios. dizer-te que o amor me espera num tempo onde te abraçava.ainda. dizer-te que o zé fernando vive sozinho numa casa pequena voltada para o monte. que nenhuma largata o voltou a encontrar.
















quinta-feira, 17 de março de 2011

























Havia uma cidade em espanto linear a cavalo noutra cidade em geometria ambígua, um jardim era metade do outro, em que as pétalas andavam para trás e para diante, com o perfume trocado e o silêncio das cores tremendo no seu erro cheio de alvoroço florido, os arquitectos disseram: é preciso um novo espaço para estas duas pessoas que estão a pensar tanto com o corpo – e numa casa abria-se a porta que vigiava os corredores onde o pólen se acendia e dançava, e de repente a porta descerrava o espectáculo antigo do nascimento da lua num quarto escuro, via-se o que a lua sempre fez para trepar do soalho para o tecto pelas paredes docemente retardadas, era o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados, e alguém escrevia à máquina num dos planos de intersecção urbana, e a frase escrita aparecia com o seu rumor externo noutro sítio, mas agora via-se no meio de uma clareira de silêncio vivo, e ia-se apreendendo a nossa mútua nudez colocada no sentido da frase, nós éramos essa cidade tremendamente posta em uso, em toda a parte estavam mãos em vez de garfos e lâmpadas, e a frase era assim: o amor, as mãos ininterruptas.

herberto helder











todos os dias percorro a cidade à procura do teu corpo. todos os dias na cidade. todos os lugares onde estivemos. onde fomos porventura felizes. tu com o teu sorriso sereno e eu com as minhas mãos nos bolsos. todos os dias. sempre um atrás do outro. no cimo da rua estreita. no largo do paço. nunca pensei que sentiria falta dos teus passos. longos. passos em volta. era como se me procurasses nos lugares errados. e eu atrás de ti a ver-te de olhar suspenso. caminhar. todas as árvores te eram como filhas. se lhes acudia a luz paravas. e o teu rosto assim quieto. sereno. no meu se vinha encontrar para um sorriso. não posso dizer que não te sinto a falta. sobretudo dos olhos. esses olhos grandes. negros. essa pele calma. essa pele. que em redor dos lábios era mais fina. tão fina que quando sorrias parecia rasgar-se nos cantos. espero-te. como de costume. à porta da casa onde nos sentávamos quando por falta de andar o peito se estreitava. abraçava-te quando a luz fugia. era o meu corpo o teu por um momento. enquanto a luz tardava o teu pescoço pousado no meu ombro. a cabeça a cair-te pelas minhas costas e esse jeito indiferente de olhares a rua de lado.





































zeynep kayan




Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?



ruy belo










quando for o tempo certo. a gente fecha os olhos. a gente abre a boca. a gente gesticula a língua. a gente espera um pouco. fica só. não fala. desenha um intervalo de silêncio. levamos as mãos à cara. inconsequente. só mais tarde percebemos que queríamos dizer. como dar o peito à bala. abrir os olhos. respirar fundo. a morte chega com os pássaros. é quase primavera nos beirais de todas as casas. voltadas para a sombra. as casas. de janelas recostadas umas às outras . as paredes de todas as casas voltadas umas às outras. quase noite e o corpo tão quieto. quando o tempo assim fica a gente já não sabe. a gente espera um pouco. a gente dá duas voltas à chave. ninguém nunca há-de saber desta gente. esta gente que volta com a noite. não grita. a gente não grita. encostamos o cabelo a um pedaço de terra. não ferimos ninguém. quase mortos. quase. falta-nos a fala. a gente já não anda. fica.









terça-feira, 15 de março de 2011

















Meu avô, aquele que construía casas, era de Castelo Branco. Fez habitações para toda a gente menos para ele. Não sei se alguma vez lhe passou pela cabeça que viria a ter um neto também construtor, construtor de coisas pequenas, frágeis, leves. Ele usava o granito como material, as suas casas estão ainda de pé; o neto trabalha com poeira, sem nenhuma pretensão de desafiar o tempo.
eugénio de andrade









meu corpo não descansa sem o teu. talvez o coração não saiba como bater. sem o teu. nem o teu bata já sem o meu. fraco. muito fraco. silêncio. nenhuma palavra atravessa agora o céu. penso em ti tantas vezes quando chove. e mesmo quando não chove e as nuvens ocupam o lugar azul. o teu rosto desapareceu. e todos os lugares onde te tive estão agora subitamente vazios. os sorrisos que me deste não têm boca. nenhum grito é teu. nada que não tivesse morrido. talvez o teu corpo ao meu regresse num dia claro.outro. quando a primavera trouxer as flores e as giestas cobrirem as paisagens. não queria que chorasses. que a solidão não te tivesse trazido dias longos. ter-te dito que todos os lugares onde estiveste são para mim os melhores lugares do mundo. que a tua voz ainda me fala dos sonhos. tinhas tantos sonhos. às vezes penduravas-te no meu pescoço para me dizeres ao ouvido que é triste envelhecer. se eu soubesse não te tinha largado. nunca. dava um nó aos braços. para sempre. todas as memórias me trazem as tuas mãos. em rugas. tenho pensado tanto em ti. do mundo conhecias pouco. fomos à galiza. vou-te contar um segredo avó: não há mais mundo para lá da ibéria. não posso chamar mundo ao que não te conheceu. longos eram os silêncios. voltavam com a queda das folhas. estive tantas vezes longe. nunca te disse a falta que me fizeste. quando as lágrimas me comiam os olhos é por ti que chamava. valentina. e o teu nome era um pássaro. um pássaro de voos altos. desses que migram. migram mas sempre regressam. gostava de te ver agora entrar por aquela porta. mesmo que não dissesses nada. que na boca te crescessem as eras. estás aqui na minha frente e sei do sol.







domingo, 13 de março de 2011














Cala-te, a luz arde entre os lábios,
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
essa perna é tua?, esse braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente á tua boca,
abre-se a alma à lingua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi facil, nunca,
também a terra morre.
eugénio de andrade

















Essa vontade de um ser o outro para uma unificação
inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
clarice lispector
























certo dia chegou-se a mim e gritou-me a primavera, corri à janela mas não reconheci na paisagem nenhuma semelhança à primavera, um manto branco-neve cobria a terra, da linha do horizonte ao meu olhar. aconcheguei-lhe o tronco nú com um abraço e fui deitar-me com ela junto à lareira. gostava de a ter amado mais nos dias frios, de a ter deitado mais vezes no meu colo, de lhe ter dito, como agora me apetece dizer, que não me importam as estações, o tempo, que tudo é quando queremos que seja e que sim, que ela tinha razão, naquele dia era primavera e eu sou triste por não me dar conta. falava muitas vezes sozinha, principalmente já noite alta, quando me sentia adormecido ou quando no gelo dos pés sentia morrer-lhe a pouco e pouco o coração. nunca soube de que falava, ouvia-a apenas em palavras rápidas e baixas, a sussurrar sobre o escuro das paredes, rente ao chão. dormia sempre sobre o lado esquerdo, quando lhe perguntei porquê respondeu-me que assim lhe pesava menos o coração; apeteceu-me chorar mas apenas me virei de costas, engoli em seco e fui sentar-me, como de costume, à janela, a ver passar a rua ou as pessoas na rua, daquelas pessoas que levam a rua consigo, porque sei da rua inteira de manhã e de apenas um pouco dela à meia-noite.
muitas vezes me apeteceu perguntar-lhe se me amava, se também por mim chorava quando chovia, se eram os meus gestos que lhe aqueciam as entranhas. e muitas vezes estive certo que sim, à maneira dela, de um modo que eu, confesso, nunca me acostumaria. certo é que quando me falava de amor era a sua pele que tremia, inteira, desde os ossos à superfície do corpo. nunca foi expressiva o suficiente para que me permitisse amá-la do mesmo jeito que ela me amava, nunca mo soube ensinar. muitas vezes me falava de outras coisas quando lhe apetecia falar de amor, falava do azul do céu quando não há nuvens, da suave brisa que atirava contra o chão as ervas daninhas nos campos, nos canteiros, junto à raiz das árvores ou do coração. todas as noites se sentava a embalar a solidão, cabeça tombada sobre o colo, pernas cruzadas no chão da sala, as mãos, como poderei eu falar das mãos, sempre geladas, pendiam-lhe dos braços como mortas. não sabia o que fazer enquanto tudo à minha volta se transformava, amargas eram as horas e o tempo que as comia nos relógios, nas paredes, no chão, nos móveis, nos espelhos, no telhado, daquela casa abandonada a desencontros de duas pessoas que se amam tanto. não sabia o que fazer. dizia-lhe de como me doíam as palavras quando as não dizia, dizia-lhe do espaço entre os nossos braços, de como me atrapalhava o não jeito para grandes conversas, como me magoavam os silêncios, as faltas, as constantes mudanças. dizia-lhe tudo quando a noite vinha porque era à noite que tudo me doía mais. a ela só lhe ficava um adeus entre os lábios, preso no caco da boca, à espera de ser pronunciado antes do corpo abrir a porta e escapar. escapar do mundo, eu sei, que a matava, escapar de mim e do amor que não soube dar-lhe. voltava de madrugada, corpo gelado, deitava-se de costas para mim e ficava de olhos escancarados a ver amanhecer na fronha do lençol. costumava ouvir-lhe algumas lágrimas mas calava-as nas minhas.
ela era o grande amor da minha vida, sabia-o bem, mas o amor, só, não chega para fazer duas pessoas felizes. costumava amar-me em espaços e tempos diferentes. amava-me à superfície e eu nunca a soube amar senão na profundidade. era eu que fugia, sempre, por uns dias, alongava-me na estrada para lhe dar espaço, para me dar espaço, para compreender como mudam as pessoas, como se alteram os afectos, para, no segredo da minha própria solidão, encontrar em mim o som dos seus passos, tão violentamente atados aos meus pés, que poucos dias depois estava de volta, e todos os regressos eram como mortes de árvores que se cortam ao meio. como seria possível o amor doer. era na humidade do rosto que se criavam larvas, bichos acostumados à lama dos sentimentos, alimentavam-se das lágrimas e ali iam ficando, junto aos olhos, a criar apatia. em mim crescia uma tristeza passiva, dessas que se encostam a nós como doenças e ficam, a aumentar-nos o negrume nas entranhas. a mim tudo me doía de uma forma lenta, tão lenta que eu próprio não me dava conta de como morria, pouco a pouco, em mim, de amor, ou de outra coisa qualquer a ele tão semelhante que dificíl seria não lhe chamar, amor.
soube das pessoas através dela, antes disso desconhecia o mundo que existe para lá da minha janela, onde era fácil à noite ver, como por magia, do negrume se fazia o universo, pintado de estrelas e outras coisas maiores como a lua, ou os seus gestos. cedo aprendi que entre nós cresciam ervas daninhas, cedo as tentei cortar mas em vão, cedo reparei que nos seus olhos nascia noite sem estrelas nem lua, sem universo, tudo era baço. tentei inumeras vezes aconchegar-lhe o corpo, ou a dor, sentava-me com ela à lareira, a ver ranger a madeira seca, a ver formarem-se as chamas, a ver crescer a cinza, a ver morrer o fogo. sem uma única palavra, sem um único mover de corpo. estáticos até ao limite superficial da pele, onde tantas vezes saboreei a vida. antes dela era o tempo de ver morrer o mundo. nos primeiros dias não me deixava dormir a seu lado, ficava do lado de fora da porta do quarto, aninhado na madeira húmida do chão, enrolado num cobertor, à espera que a manhã a descibrisse desperta. tinha medo que morresse sem mim, sem ninguém.
vinha às vezes falar-me devagar, principalmente aos domingos, já tarde alta, chegava-se a mim por trás e enumerava os pequenos objectos da sala, um a um, até se lhe esgotar a voz na chávena presa aos dedos da minha mão, depois abraçava-me rápido, antecipando a fuga subsequente. escondia-se de mim durante dias, fechada no quarto brincava com as paredes, com as moscas mortas contra as paredes, com a madeira suja do tecto, com a roupa, com o cabelo que sempre cortava rente, com o dia, com a noite, com os móveis, e deixava que tudo aquilo se suicidasse lentamente nos seus olhos, até lhe subir uma certa loucura à cabeça. deambulava depois pela casa, descalça, à procura de calor. sempre soube dar-lhe espaço, até ela se afogar no espaço que eu lhe dava, como uma pequena lágrima quando cai à chuva.
nunca a chamei pelo nome, duvido que tenha nome próprio, se o tiver deve ser um desses substantivos monossilábicos, qualquer coisa simples como o mar. nunca gostei de dar nome às coisas ou às pessoas. sabia-a perto porque me cheirava a primavera, mais perto ainda quando me sabia a sal. ela nomeava todas as coisas como se os nomes que lhes dava fossem morrer com elas a seguir, quando num ápice de loucura ou terror, move-se o corpo. julgava que era nela que crescia a morte, qual flor silvestre a nascer num muro, quando nem sequer é tempo de flores, nem de muros. eu sabia que nela nascia o nome de todas as coisas que eu nunca soube existir.
quando me ponho agora a observar o mundo, que é esta pequena casa, escondida ao fundo de uma não menos pequena rua, sei de todas as pessoas, todos os rostos que aqui estiveram a julgá-la, a apontar-lhe o dedo, a ameaçar-lhe os silêncios. quis um dia expulsá-las todas daqui mas não me deixou. acredito que pertenciam já às raízes da sua, mais lúcida, memória; acredito que todos os dias tentava recordá-los menos vezes. mas eram esses rostos que a impediam de sair deste espaço invernal, amarravam-lhe os pés ao soalho, as mãos ao tecto e ficava crucificada à censura de meia dúzia de vozes que se querem longe. ainda os ouço falarem de morte, todos acanhados, como se a morte fosse um bicho caprichoso e pudesse derepente aparecer-lhes. ela calada, como sempre, à espera que a morte não fosse tão óbvia, tão sem sal, perderia toda a graça.eu quando falo de morte é do lado de fora que a vejo, por dentro é só carne e órgãos e sangue e outras coisas, que andam por ali a boiar, restos de afectos, creio, sentimentos, julgo. a morte a ela dava-lhe tesão.
um dia partiu na calmaria de um beijo, foi, primeiro pela luz fosca da manhã depois pelo sol, nunca mais a voltei a ver. às vezes procuro-a fora de mim, na imobilidade dos objectos, no caudal estático das lágrimas, já sem rosto, ou corpo que a recorde. mas é por dentro da pele que a encontro, a sua solidão a abrir-se em ferida no meu peito, o seu não jeito para o amor, como se amar-me fosse o que de mais precioso lhe entregara a vida. custa-me recordar-lhe as feições, às vezes prefiro chorá-la, só assim, chorá-la inesgotavelmente, até me afogar dela e morrer para sempre. estar só é ver crescer a humanidade nos objectos e ver morrer-nos a humanidade no corpo, ser humano é transitório. a mim custa-me sentir tudo isto, sem paz, sem nada. sinto-me sem casa, sem vida que me habite, sem um diabo que me carregue ao colo, me leve de encontro à luz solar que a levou.
acordou-me. estava vestida de neve, descalça, gelada. era inverno, talvez novembro, não consigo precisar o dia. em cuecas desci a correr as escadas, assim saí à rua e dançamos de madrugada, flocos de vida ainda, a desfazerem-se em água. foi o madrugar mais bonito da minha vida, ainda hoje lhe sinto o gelo a queimar-me a pele do peito, a incendiar-me o coração. não me deixou abraçá-la, raramente me deixava abraçá-la, encolhiasse depois no chão, em forma de caracol, joelhos contra a boca. nunca lhe soube dizer que a amava ali assim, sozinha, enrolada em si mesma, a tentar ouvir bater o seu próprio coração.









parabéns, b.















sexta-feira, 11 de março de 2011




















teresa queirós






O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

eugénio de andrade




vou com os pássaros. no topo das árvores. no mundo. o mundo todo tão pequeno. e vou com os pássaros. se volto não sei. se o vento for forte. se as asas forem pequenas. se o coração não pesar. se as manhãs forem todas claras. na pele os dias caem como penas e o sol não parte. nem o coração. nem a cabeça. se fico só o sabe o tempo e os lugares onde nunca estive. com os teus braços em volta dos meus. a tua boca ri como as flores bravas nos muros. nas tuas mãos todos os leitos correm. e nenhum rio nunca será teu. os pássaros não morrem.






















uma ternura, só, das tuas
não palavras, as dóceis, as
migrantes, as sem

nome sequer, ninguém, algum
calor dos dedos quando, em torno,
o surdo som se alheia

um rio, um riso, uma memória
do lado escuro
das mãos, grato

te escondo, esqueço, na
estéril noite agriceleste,
em neve, em chama, em terra

amordaçado,
em laço, em água, em chão
de chuva destrançado,

meu puro amor de noitarder, de som
bra pequena em muramor, murmúrio,
meu morto corpo nu, meu cegamante.

antónio franco alexandre





porém dizer-te que os pés são dois hortos enormes. o corpo descansa quando os olhos se fecham. que dizer dos dias que passam com o vento. lá à frente, sempre mais à frente, vai-me o coração. fora falar-te do tempo que o rosto passa entre as mãos. ou o espaço entre os dois braços. onde estás. todas as frases são pequenas quando te olho de frente.







terça-feira, 8 de março de 2011











Como posso eu amar-te, se nem sei
como à porta te chamam os vizinhos,
nem visitei a rua onde nasceste,
nem a tua memória confessei.
Que vaga rima me permite agora
desenhar-te de rosto e corpo inteiro
se só na tua pele é verdadeiro
o lume que na língua se demora...
Não deixes que te enganem os recados
na infernal gazeta publicados
que te dão já por escultura minha;
nocturno frankenstein, em vão soprei
trombas de criação, e foste tu
quem me criou a mim quando quiseste

antónio franco alexandre






não partas nunca mais. os dias passam. amanhã é tarde. quando acordares já cá não estás. deixa a pele na pele ficar. deita os olhos. ao coração deixa um pedaço de terra onde fazer morada. não regresses. não te lembres. esquece. o mundo é um lugar longe. demasiado longe. esquece. amanhã é tarde. não leves o meu nome. não. nem os pássaros migrados de amor. não os leves. nem ao rosto. quanto mais o corpo. faz de conta que os dias foram todos teus. deixa o tempo. deixa o rio e as memórias onde fomos felizes.


em paz.














segunda-feira, 7 de março de 2011










.

venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.
.
antónio franco alexandre



se a rua ficasse a meio e o coração se desse como a uma erva o vento. se a erva então crescesse muito. a pele nas raízes e nos dedos um pedaço de terra onde semear amor. o tempo existe para ser nosso. todas as ervas dizem desta história. só os teus olhos são o pequeno verde de manhãs claras. quando acordares ainda a rua está a meio. ainda o coração é teu e o mundo todo com ele. ainda as ervas se fazem na pele quando te abraço.









domingo, 6 de março de 2011

























Escrevo-te de perto, como se a mão
te fosse objecto breve aflorado,
como se da rua te chegasse
a certeza pequena para a compra
dos minutos seguintes. De perto
como o sol, como a cigarra.
Como um silêncio cheio
que te viesse aos olhos de manhã
e amar-te fosse a roupa
escolhida ao começar o dia.

pedro tamen

No fim de contas são poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos fazem bater o coração, e menos
ainda com o correr do tempo.
No fim de contas, são pouquíssimas as coisas
que na verdade importam nesta vida:
poder amar alguém e ser amado,
não morrer depois dos nossos filhos.

amalia bautista






todos os nomes te procuram onde as ruas começam ou acabam. uma brincadeira, um simples encolher de ombros, e o meu corpo abraça o teu. só mais à frente nos damos conta dos braços, são quatro, muito dados uns aos outros. dois corpos sós com o mundo, no príncipio ou no fim das ruas, todos os nomes.










sábado, 5 de março de 2011










É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
ruy belo



duas flores de giesta à entrada da porta. um vaso quebrado. ninguém sabe da mãe. quando as luzes se apagam é já tarde na casa. quase morta de espanto. um latido agudo vindo de norte interrompe o silêncio. nenhum cão sobe a rua. não há sequer rua. ninguém regressa. houvesse só o vento. uma chuva miúda. um bocado de nuvem acode à paisagem. ninguém.

- olá avó. voltaste.

[ ]















sexta-feira, 4 de março de 2011















A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.
nuno júdice







as flores nascem. nos muros. no coração. no teu rosto as flores adormecem o frio. tenho saudades tuas. de me dizeres que o tempo é feito de estações. de me esquecer dos meses. é março. sei-o tão bem. há três meses que partiste. ainda perto os sinos dobram. tenho saudades dos teus olhos. tristes. olhos. dois pequenos e vivos olhos. os teus. a última vez que te vi tinham-se fechado. chegou a altura dos pássaros. vêm com o vento. cheios de penas. ainda não vi andorinhas mas devem estar para chegar. talvez aquela volte a fazer ninho no telhado da casa. talvez não volte. talvez seja só o meu coração a doer. as memórias doem. gostava de te ter fotografado mais.de pé à porta de casa ajeitavas o avental. o cabelo curto branco para trás. sorrias. gostava de te ver sorrir mais.








quinta-feira, 3 de março de 2011












tua presença só é visível nas fotografias dos barcos
as quilhas são a tua memória longínqua das Índias
vai
com os pássaros de bicos exuberantes e sonha
e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca
onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas
a cidade espera-te com o cais de madeira
junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios
agarra-os dentro de ti
até que da terra lodosa brotem especiarias
porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade
só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade
inundando um breve instante a noite de nossos desastres
só longe daqui

al berto





não muito longe. porque o tempo passa. não muito longe o rosto da boca. que a manhã aperta o corpo. nesse silêncio absurdo onde me meto. não muito longe a casa deserta. não muito longe ia o nome. o coração corria. não havia barcos no mar. o céu era um nada coberto de estrelas. e o teu nome sempre de passagem. um dia. não muito longe. talvez te lembres de como voa um coração-pássaro.






quarta-feira, 2 de março de 2011











"conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo"
al berto




no baldio os braços. erguidos. só depois o corpo fundo na erva. nenhuma palavra é este lugar onde as memórias crescem. com o tempo desapareces. como quando fugias com as árvores. em nenhuma casa ficaste. mesmo quando adormecias. a tua pele subitamente fria. mesmo quando corrias ou chamavas o meu nome. nenhum outro nome decoraras. qualquer silaba na tua boca era silêncio. todas as memórias te procuram para um adeus. eu fecho os olhos. a pele fria. o corpo segue com o vento sul.




terça-feira, 1 de março de 2011
























O olhar é um pensamento.
Tudo assalta tudo, e eu sou a imagem de tudo.
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora
- não posso escrever mais alto
transmitem-se, interiores, as formas.

Herberto Helder





quando me dou conta a avó já não está na varanda. o gato desapareceu. é março. é a primavera. o vento passou. o irmão foi de viagem. a cabeça dói. também o coração. os pés são dois pedaços de terra. no cabelos resmas de sol. quando me dou conta já não sei falar de amor. ao peito nesgas de luz. o tempo é um lugar pequeno que me fica entre uma palma e outra. a vida passa e nada fica.