domingo, 28 de novembro de 2010














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olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

ana cristina césar






Mesmo se algum dia acontecer
nalgum vulgar encontro, ver-me morto,
decerto saberei como nascer
de novo, ser planta e animal
e breve sopro, às vezes, no teu rosto.
Pelo caminho cego da floresta
virei ao pátio, à fonte debruçada,
ao modesto esplendor da jovem faia;
e terei, para dar-te, o riso claro
da vida que não cessa de perder-se.
Pousado o coração dentro do peito,
feito artista da cor, puro fantasma,
na ardósia a giz desenharei um nome
como quem traça um circulo perfeito.

antónio franco alexandre








dizendo. todas as coisas. depois de fechar os olhos só a boca permanece. o nome está como um pássaro que constrói o ninho. dezembro é. está. breve. nenhuma memória dói. nenhum dia triste. só um rumor de mar. deixei para trás os olhos. a boca. dizendo. todas as coisas. não quero ouvir. e sem ouvidos vou que o corpo é. dezembro.










domingo, 21 de novembro de 2010





























Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.
antónio maria lisboa




Vivo ilegalmente
na minha idade: falhei alguns aniversários.
Caminhei até onde o medo permitiu,
à beira das levadas de rega.
O meu primeiro amor foi um gafanhoto
verde, depois outros bichos pequenos.
Nunca me apaixonei no cinema
como as outras raparigas: apaixonei-me
pelo cinema.
teresa m.g. jardim








sei das amoras. sabes das amoras. nas silvas, no alto dos arbustos, atrás dos eucaliptos. as silvas no alto dos arbustos. comes as amoras. os lábios negros delas. eu sempre atenta. picam-te os braços nús, as silvas. as amoras são grandes, ficam-te presas entre os dentes. sorris.











sábado, 20 de novembro de 2010




































Não sou feliz, nem poderia sê-lo nunca.
A memória do mal acompanha-me como um cilício.
As minhas ilusões lembram-me os frutos
dos recantos sombrios:
não amadurecem.
miguel torga




Tu corres a meu lado
na direcção contrária.
Qual de nós irá chegar
primeiro à solidão
josé miguel silva






decerto nunca to disse. .e se to disse decerto já não me lembro. .a memória com o passar dos anos encolhe. .também tu. .e o coração. .e decerto todas as coisas que foram do mesmo tempo de onde tu eras. .agora sei. .decerto são tão curtos os dias. .tão longas e demoradas noites trago no peito. .que o coração é um pedaço negro de nuvem cheia. .chove. .não há palavras e se as houvesse não chegariam para todas as memórias que tenho. .tão poucas que ao recordar-me decerto só o teu nome chegaria. .nunca to disse. .nem tão pouco mo disseste. .talvez o amor só o seja no silêncio. .talvez falando o amor morresse. .por isso calamos. .todo este tempo em que foras ou não eras ou não estavas. .todo este tempo decerto nunca to disse. .que o coração é uma nuvem negra. .cheia.










quinta-feira, 18 de novembro de 2010








































embrasse  moi.































Quando caminhares na dor como um chão
estarás de pé na morte onde te vejo
na cal viva das paredes dos ossos
o teu abraço chegará a mim
como um rio acordado de frio.

pedro sena-lino


















There is wind where the rose was,
Cold rain where sweet grass was,
And clouds like sheep
Stream o'er the steep
Grey skies where the lark was.

Nought warm where your hand was,
Nought gold where your hair was,
But phantom, forlorn,
Beneath the thorn,
Your ghost where your face was.

Cold wind where your voice was,
Tears, tears where my heart was,
And ever with me,
Child, ever with me,
Silence where hope was.

walter de la mare

























terça-feira, 16 de novembro de 2010









































ninguém. .ocupa agora a casa. .e nem os olhos são. estão de passagem. .todos os nomes foram. fica só. .fico só.digo. .cansaço. é de manhã e as ruas vêm todas dar a esta. duas pedras e um lençol de água. .amo-te. .não ouves. porquê. .para quê. .onde. e tudo acaba onde a rua começa. nenhum nome igual ao teu me chama. nenhum olhar. nenhum céu fechado.nenhum pássaro fica em terra. digo. . não sei esquecer-te. nem lembrar-te menos. e só amar-te. .só assim. .não chega.











segunda-feira, 15 de novembro de 2010



























lembro-me do vestido. muito azul. com uma marca d'água no rebordo. quase transparente. quase, a olho nu não se via. e ela descia a rua. lembro-me de já te ter falado dela. e do vestido. e de te esperar um pouco abaixo do rebordo. de te dizer que não choro quando faz sol. que. talvez um dia te apercebas que ela e o vestido existiram apenas naquela rua, àquela hora. só nos meus olhos. que a amei como nunca tinha amado ninguém. e posso dizer-te que alça lhe caída do ombro, a seda fina, tão fina. a pele muito branca, de neve. branca. e os olhos de um negro tão negro, tão fundo. tão abertos. e lembro-me de correr rua acima até ela. ela que descia. eu que subia. e a rua não era a mesma. tínhamos nascido em ruas diferentes. eu sei, chorava.













































Fechado em mim mesmo,
sem portas de entrada ou saída.

O homem que evita a sua sombra
persegue um impossível.

E aquele que foge
dá menos importância ao que leva consigo
do que ao que deixa para trás.

Aceito-me como sou.

A escuridão fecha-se como um muro
e não há portas de entrada ou de saída.

Quem pensa em mim
agora?

josep m. rodriguez




É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalhas, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.

herberto helder







provavelmente alegria. breve. alguém que assim se pareça. ou apareça. ou então a tristeza, em círculos. um incêndio entre os dedos das mãos. não sei que te dizer. era o mesmo que correr, era o mesmo que fugir. talvez desapareça. uma manhã destas. talvez. cuido de ti. cuido. não posso é esquecer. não partas nunca mais. o meu coração, é um cato. não partas nunca mais.









domingo, 14 de novembro de 2010



















































hard times for dreamers.






Só mais uma menina entre outras
E o quadro negro onde escrever o teu nome a giz
Como um erro ortográfico do coração.

Castigo.
Entre nós o alto muro do recreio
E a obrigação de permanecer só.

ana salomé











meio da tarde em campo de besteiros: água, pequena e fria,
caindo do granito; e na penumbra,
as flechas. penso: não poderei jamais
esquecer este sítio, este limite,
a serena harmonia de colinas e corpos.
mas tu escondes a boca com as mãos, e já a noite
anónima nos funde; a nuvem cobre campos desolados,
e a paciente traça rói o arco-íris.


vou ficando invisível, aos pedaços,
comendo laranjas no escuro.
o teu corpo é dos que nunca lêem livros,
sabem de estradas e de pássaros, pouco mais;
a tua morada tem no telhado as frinchas
da lei, onde se vê o céu; e eu,
absorto de silêncio e de chuvisco,
ó tosco cantador!,


dissolvo-me na sombra da paisagem,
separo-me de nós, de mim, serei só quase
a chama no carvão que fica ardendo
noite fora, noite fora.
acordaremos, já sei, transparentes e sábios,
do outro lado da criação do mundo;
uma mão presa à luz, outra nas trevas,
um só tronco de chamas, uma asa.

antónio franco alexandre








que lugar este. onde fico. quando o corpo morre. queria. dois braços por dentro da boca. tirem-me do silêncio onde me meti. se aqui me meti ou me meteram. e chove. por dentro do corpo ele ainda espera. se pudesse falar chorava muito. chorava. não podendo falar. não fico. nem a boca. nem o corpo. que lugar este.








































sábado, 13 de novembro de 2010

































em véspera de aniversário.






Eles querem
que eu faça o que faço

Eles querem
que eu diga o que digo

Eles querem
que eu seja o que sou

Eu não quero
fazer o que faço

Eu não quero
dizer o que digo

Eu não quero
ser o que sou

Hoje estou
amanhã sou

E depois
que levem o melhor
que para mim
tanto me faz.

henrique risques pereira







Tristeza para fazê-la humana. E
esperança suficiente para fazê-la feliz.
clarice lispector










por que. se a chuva. se ela viesse ocupar os espaços vazios do corpo. por que. se era tudo pequenino. e as mãos viam o sol por entre os dedos. era tudo pequenino e chovia. por que. se a avó acordasse tarde estava doente. lembro. estava doente. e era tudo pequenino. não sabia da porta de casa. quando chove. como chove. onde. por que. se a chuva parasse a avó morria. era na memória. tudo. não há como lembrar. nem como não. lembrar. por que. se a chuva. se ela viesse não estava triste. estava sozinha.









terça-feira, 9 de novembro de 2010









































Haverá noite para este dia digam-me, uma altura em que deixo de distinguir o salgueiro e depois do salgueiro a janela, os móveis desaparecem porque não acendemos a luz, ficam as pegas de metal a brilhar um momento, um frémito nas portas que ninguém gira, os meus irmãos procurando-se e eu em busca da saída dado que principiaram as dores e não acho o caminho da rua, apercebo-me do alpendre onde a lanterna baloiça na corrente, ao regressar ao baldio via-a na esquina e acalmava, estou a chegar, estou em casa, não me fazem mal já, o quintal fechava-se- -me sobre o corpo e escondia-me, nenhuma cólica, nenhum suor, a paz e com a paz a indecisão da madrugada no peitoril
- Nasço não nasço?

antónio lobo antunes











Este inevitável vazio
das coisas, a sua falta
de relação com as nossas expectativas
e a esperança com que as
definimos, não é um vazio
passivo; sussura, reclama que
a pedra continue a ser pedra,
que o vertical, o instantâneo,
continue a incidir sem violência
sobre o horizontal. O permanente,
então, resistirá com a paciência
própria do alheio, do que já
não importa, explicando-nos de novo
as primeiras ligações para que não
mais esqueçamos que a água
é a pedra mais dura.

mariano peyrou











Penso às vezes que chegou a hora de estar calado.
Pôr de lado as palavras,
as pobres palavras usadas
até ao fio,
vexadas uma e outra vez
até perderem
o mais leve sinal da sua intenção primitiva
de nomear as coisas, os seres,
as paisagens, os rios
e as efémeras paixões dos homens
montados em seus corcéis
que a vaidade aparelhou
antes de receber a curta,
a irrebatível lição da tumba.

Sempre os mesmos,
gastando as palavras
até não poder, sequer, orar com elas,
nem exibir os desejos
na parca extensão dos sonhos,
seus mendicantes sonhos,
mais propícios à piedade e ao olvido
que ao vão estertor da memória.

As palavras, enfim, caindo
ao poço sem fundo
onde vão buscá-las
os enfatuados tribunos
ávidos de um poder
feito de sombra e desventura.

Imerso no silêncio,
mergulhado em suas águas tranquilas
de levada que detém o seu curso
e se entrega ao imóvel
sossego das lianas,
ao imperceptível palpitar das raízes;
no silêncio, como disse Rimbaud,
há-de morar o poema,
o único possível já,
lavrado nos abismos
onde tudo o que é nomeado
perdeu há muito tempo
a menor ocasião de subsistir,
de instaurar sua estéril mentira
tecida na trama rala das palavras
que giram sem descanso no vazio
onde se perdem
as néscias tarefas dos homens.
Penso às vezes que chegou a hora de estar calado,
mas o silêncio seria então
um prémio desmedido,
uma graça inefável
que eu não creio ter ainda alcançado.


álvaro mutis













quinta-feira, 4 de novembro de 2010


























já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

paulo leminski









dou por mim. às vezes penso em ti. já nem a cara vejo, nem o coração. só uma sombra muito turva. só. e nem os olhos sei se olham os meus, nem a boca aberta, ou fechada, ou. nem eu. e dou comigo. e sei de mim. sou eu. que fazer quando o corpo te regressa. que não fazer se não te visse, ainda que sombra. ainda que turva. ainda que tu. eu. e dou por mim e dou comigo e sei que vens. que me procuras quando o coração já foi. e eu choro. corro e sei. eu morro. agora que já aqui estás.










































onde estiveram eles
por que caminham como se de tão longe
que nenhum passo pesado que baste
como se um em frente para outro inverso
como se andar sequer fosse indiferente
que nenhuma palavra suficientemente dorida
que só o silêncio e que nem ele
que nada porventura ou só a vida
bénédicte houart











não posso, não, não chorar. deixar então o corpo correr, se ao menos o corpo corresse em direcção ao sol e se espetasse na luz para sempre. assim morrer. com a cegueira na pele e a boca aberta. para sempre. a boca. e não posso, não, não ter no rosto duas lágrimas pequenas. e esta certeza de que o mundo foge com o corpo às costas. talvez mais tarde. quando dezembro vier e se dezembro vier. nunca se sabe. se o mundo partir leva dezembro com ele. nunca se sabe. assim morrer.










quarta-feira, 3 de novembro de 2010





























às vezes
perigosamente
as veias coagulam
não percebem:
viver é uma hemorragia calculada
ana hatherly






















nunca acreditei na felicidade. essa coisa de sorrir nunca me disse respeito. acreditava quando os via sorrir, aos outros, tudo parecia tão fácil quando arregalavam os olhos e a boca. tudo faria de qualquer forma sentido, e o sentido que assim fazia corria com a minha vida, em ponto morto. às vezes sentava-me só a observar os outros, tantos corpos quebradiços. frágeis como as nuvens de água repentina. nunca lhes falava, falar para quê, se os via assim cobertos de lágrimas, mas só nos meus olhos elas existiam. nunca acreditei que não chorar fosse o constante movimento de um corpo que anda. e aprender a andar é complicado, o corpo é pesado, o coração tomba. é preciso ser delicado para perceber a rotação do espaço vago à nossa volta e equilibrar o corpo. aprendi a andar há pouco tempo, antes apenas cambaleava. talvez os dias mais curtos tendam para a chuva. talvez para o sol. ou talvez a chuva ou o sol tendam para os dias mais curtos. hoje é um dia curto e dói-me o coração, quase tomba. gostava de perceber o movimento das estações, se é como o do corpo, se também se trata de um equilíbrio. um dia, talvez encontre quem mo ensine, acredito. por agora pouco mais posso fazer. sentar-me-ei como de costume a ver passar os outros.


















terça-feira, 2 de novembro de 2010





























Necessito de algo que me sacuda por dentro
e que se me agarre com força,
para que eu entenda
que ali há qualquer coisa para contar.
josé saramago











































Não é verdade que o céu seja indiferente às nossas preocupações e anseios. 
O céu está constantemente a enviar-nos sinais, avisos, 
e se não dizemos bons conselhos é porque a experiência 
de um lado e do outro, isto é, a dele ou a nossa, 
já demonstrou que não vale a pena esforçar a memória, 
que todos a temos mais ou menos fraca.
josé saramago