quarta-feira, 17 de outubro de 2012





mark sink 







Fica comigo. Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse. Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da infância.

 - O que se passa contigo?


antónio lobo antunes






 há dias assim. nada me assenta bem. nenhum sapato me serve. nenhuma ombreira de casaco - os pulsos doem-me. os pássaros migraram. a chuva voltou. por cima dos telhados um caudal de água e a certeza. quase absurda. de existir - a existência é este saber-se submerso e só no mundo - quero dizer baixinho. para que ninguém ouça. que este corpo não é meu. nem são meus os ombros que não assentam nos casacos nem estes pulsos - que mundo é este onde me meteram sem que eu soubesse e. agora que o descubro. que corpo é este onde dou comigo -




terça-feira, 16 de outubro de 2012





aëla labbé







 As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas

ruy belo 






em tempos tive uma casa de musgo. era dezembro e as chuvas de inverno rompiam a terra. lembro-me de lhe dar um nome. esqueci-o. tão poucas coisas a memória guarda. tanto queremos esquecer - costumava visitar esta casa. dias a fio me sentava à porta com a pele no frio dos troncos. de passagem via os pássaros e outros animais mais pequenos. um chão de folhas a abrigar o medo - esta casa perdeu-se. que vida dar-lhe fora das memórias. com que cores pintar a estação das chuvas. já não tenho sonhos - sonhava um dia ter uma casa maior. com espaços grandes onde construir carinho. com vista para lugares que não me esquecem. nenhuma casa maior poderá existir onde morrem os sonhos - eu sei que a casa de musgo em algum lugar me espera. rodeada de troncos frios onde fazer assento. sob a vista de pássaros e animais mais pequenos.




domingo, 14 de outubro de 2012





laura makabresku








nem sequer telefonaste
tentava caminhar e tudo o que conseguia era bater
com a cabeça no lavatório tentava lembrar-me do meu nome
e só um rápido movimento de barbatanas sujas me aflorou a boca
esperei que viesses ao entardecer
abrisses os braços para mim
esperava que surgisses como um osso de luz reconhecível
mesmo durante a noite esperei
que me prendesses de novo para que não se enchesse o quarto
de peixes de enxofre devoradores de paredes
e tu nunca vieste
mais nada me poderia acontecer
teu rosto chegava-me à memória como mancha de fumo
longínqua nódoa de água e sangue
nos pulsos
uma mancha e tu não chegaste

desculpa
o que te queria dizer talvez não fosse isto
a solidão turva-se-me de lágrimas
e nas pálpebras tremem visões do meu delírio
olho as fotografias de antigos desertos
corpos coerentes que fomos
bocas de papel amarelecido
onde a sede nunca encontrou a sua água
e às vezes ainda tenho sede de ti

al berto









como dormir de braços esticados - noite fora imagino o teu rosto submerso. os teus olhos fundos na pele. lábios desenhados pela força do silêncio. esse teu jeito trágico de ajeitar as sobrancelhas sempre que me vias - na pressa de te encontrar invento duas ou três palavras fáceis: olá amor. até depois - o teu corpo rodeado de neve. como vai frio o tempo em que não te tenho - quero morrer de pé como as árvores. que as raízes velhas me não deixem cair. que as mãos dos que amo me não deitem ao chão.