domingo, 31 de outubro de 2010



































Nos dias nevoentos fecho as janelas, acendo a luz forte e deito-me no tapete. Leio ou penso. Ou então fumo, enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem, e as mais pesadas descem e as mais leves se tornam pesadas, até ser impossível destruir o silêncio.

herberto helder








onde estiveram eles
por que caminham como se de tão longe
que nenhum passo pesado que baste
como se um em frente para outro inverso
como se andar sequer fosse indiferente
que nenhuma palavra suficientemente dorida
que só o silêncio e que nem ele
que nada porventura ou só a vida

bénédicte houart





é este o sofrimento do Outono
o primeiro frio e a flor adiada
para um tempo que já não há-de
ser meu

rosa alice branco










































quarta-feira, 27 de outubro de 2010











Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode um homem vê-las
cair e conseguir viver
(e cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver
cair as folhas e viver


ruy belo
















































há um país soberbo, um país de Cocanha, dizem, que eu sonho visitar em companhia de uma velha amiga. País singular, mergulhado nas brumas do nosso Norte, e a que poderíamos chamar o Oriente do Ocidente, a China da Europa, de tal maneira nele se espraiou a ardente e caprichosa fantasia, de tal maneira ela o ilustrou, paciente e obstinada, com suas sábias e delicadas vegetações.
Verdadeiro país de Cocanha, onde tudo é belo, rico, tranquilo, harmonioso; onde o luxo se compraz em mirar-se na ordem; onde a vida é fácil e doce de respirar; onde não se conhece a desordem, a turbulência e o imprevisto; onde a felicidade se casa ao silêncio; onde até a cozinha é poética, farta e excitante ao mesmo tempo; onde tudo se parece contigo, meu querido anjo.
Conheces essa doença febril que se apodera de nós nas frias misérias, essa nostalgia do país desconhecido, essa angústia da curiosidade? Há uma região que se parece contigo, onde tudo é belo, rico, tranquilo e harmonioso, onde a fantasia construiu e decorou uma China ocidental, onde a vida é doce de respirar, onde a felicidade se casa ao silêncio. É lá que se deve ir viver, é lá que se deve ir morrer!
Sim, lá é que se deve ir respirar, sonhar e prolongar as horas pelo infinito das sensações. Um músico escreveu o Convite à Valsa; onde aquele que há de compor o Convite à Viagem, que se possa oferecer à mulher amada, à irmã eleita?
Sim, nessa atmosfera é que seria bom viver - além, onde as horas, mais vagorosas, contêm mais pensamentos, onde os relógios fazem soar a ventura com mais funda e mais significativa solenidade.
Em luzentes painéis, ou em couros dourados e de uma riqueza sombria, vivem discretamente pinturas beatas, calmas e profundas, como a alma dos artistas que a idearam. Os poentes, que tão ricamente colerem a sala de jantar ou a de visitas, são coados por belos estofos, ou por essas altas janelas trabalhadas que o chumbo divide em numerosos compartimentos. Os móveis são vastos, curiosos, estranhos, armados de fechaduras e segredos como almas requintadas. Os espelhos, os metais, os estofos, os ouros e as faianças executam para os olhos uma sinfonia muda e misteriosa; e de todas as coisas, de todos os recantos, das frestas das gavetas e das pregas dos estofos, exala-se um perfume singular, uma santidade de Sumatra, que é como que a alma do apartamento.
Verdadeiro país de Cocanha, digo-te eu, onde tudo é rico, asseado e rebrilhante, como uma bela consciência, uma suntuosa bateria de cozinha, uma ouriverasia esplêndida, uma joalheria multicor! Para ele afluem os tesouros do mundo, como para a casa de um homem laborioso e que fez juz à gratidão do mundo inteiro. País singular, superior aos outros, como a Arte à Natureza, onde esta é reformada pelo sonho, retocada, embelezada, refundida.
Procurem, tornem à procurar, dilatem continuamente os limites de sua felicidade, esses alquimistas da horticultura! Ofereçam prêmios de sessenta e cem mil florins a quem lhes resolver os ambiciosos problemas! Por mim, encontrei a minha tulipa negra e a minha dália azul!
Incomparável flor, tulipa revelada, dália alegórica, não é lá, nessa bela região tão serena e pensativa, que seria bom ir viver e florir! Não ficarias, lá, emoldurada em tua analogia, e não poderias espelhar-te, para falar a linguagem dos místicos, em tua própria correspondência?
Sonhos! sempre sonhos! e quanto mais ambiciosa e fina é alma, tanto mais os sonhos a afastam do possível. Cada homem traz em si sua dose de ópio natural, constantemente segregada e renovada; e, do nascimento à morte, quantas horas podemos contar preenchidas pelo verdadeiro prazer, pela ação feliz e resoluta? Viveremos jamais, conheceremos algum dia esse quadro que o meu espírito pintou, esse quadro que se parece contigo?
Esses tesouros, esses móveis, esse luxo, essa ordem. esses perfumes, essas flores miraculosas, tudo isso és tu. És tu, ainda, aqueles grandes rios e aqueles canais sossegados. Os enormes navios que eles carregam, atulhados de riquezas, e donde sobem os monótonos cantos da manobra, são os meus pensamentos que dormem rolam sobre o teu seio. Docemente os conduzes para o mar que é o Infinito, a refletir as profundezas do céu na limpidez de tua bela alma; e quando, fatigados do marulhar das ondas e repletos dos produtos do Oriente, eles reentram no porto natal, são ainda os meus pensamentos enriquecidos que do Infinito volvem para ti.


charles baudelaire









segunda-feira, 25 de outubro de 2010
















Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo.
Lo que me gusta de tu sexo es la boca.
Lo que me gusta de tu boca es la lengua.
Lo que me gusta de tu lengua es la palabra.
julio cortázar








































esta noite dormi vestida e tive frio, um frio
feito de tudo com que atulhámos a distância.
rosa alice branco








Nada se modera nem se suaviza na memória, que imagina e adorna cada momento. Nada se despoja, salvo a indiferença. Antes dizia: não me esqueças; agora: esquece-me por favor. No esquecimento está a minha esperança, na recordação a minha tortura; mas o mais terrível de tudo é que prefiro a recordação ao esquecimento, e a tortura à esperança.
silvina ocampo









penso:
que tempo faz entre o que te digo e o que choro.
que há entre a pele e o toque.
o que fica para sempre.
que às voltas eu perco o coração.
às vezes era só ficar calada
para sempre.
fechar os lábios e não respirar.
para sempre.









domingo, 24 de outubro de 2010












não posso, sei-o, esquecer-te. esquecer a noite azul em que partiste com as estrelas azuis ao colo. que manto cobrirá agora as noites. se ao menos as tivesses levado todas. se ao menos me tivesses levado como a uma estrela. podia agora chorar no teu colo, deixar-me cegar por uma nesga do teu cabelo. não posso não lembrar-te, sei-o. todas as palavras depois de ditas desaparecem, vão para as noites que levaste, decerto. não posso não lembrar as noites no teu rosto, sempre azuis. e as estrelas amarradas à pele da tua barriga, tão de força. tinha inventado para nós um lugar onde não houvessem dias. que a escuridão vivesse para sempre nos teus olhos. talvez aí entendesses quando eu te dizia que é difícil encontrar estrelas. talvez então percebesses que as estrelas vivem por dentro da película transparente que segura os olhos. não posso. nunca mais. não voltes. não saberia como abraçar-te agora que já sei da falta que me fazes. e se partisses de novo, quem me promete que não levarias todas as estrelas azuis de novo. porquê. sei-o. todas as noites são tuas, mesmo depois de partires, ainda cá vivem para te esperar. se tu soubesses do que conto às noites, que a escuridão é leve afinal e breve é o choro. que já não sei chorar sem as tuas mãos na minha cara. que já não sei cair sem o teu corpo. desculpa não ter chamado pelo teu nome todos os dias. não sei como dizer silêncio.





















Vimos da escuridão e somos luz
ou nascemos da luz e somos sombra?
teresa balté






Já escondi um AMOR com medo de perdê-lo, já perdi um AMOR por escondê-lo.
Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos.
Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso.
Já passei noites chorando até pegar no sono, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem.
Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram.
Já passei horas na frente do espelho tentando descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer sumir.
Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi.
Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto.
Já sorri chorando lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir.
Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam.
Já tive crises de riso quando não podia.
Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva.
Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse.
Já gritei quando deveria calar, já calei quando deveria gritar.
Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros.
Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros.
Já contei piadas e mais piadas sem graça, apenas para ver um amigo feliz.
Já inventei histórias com final feliz para dar esperança a quem precisava.
Já sonhei demais, ao ponto de confundir com a realidade... Já tive medo do escuro, hoje no escuro "me acho, me agacho, fico ali".
Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais.
Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria.
Já corri atrás de um carro, por ele levar embora, quem eu amava.
Já chamei pela mamãe no meio da noite fugindo de um pesadelo. Mas ela não apareceu e foi um pesadelo maior ainda.
Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram... Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim.
Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco q eu vou dizer:
- E daí? Eu adoro voar.

clarice lispector













quanto ao amor. deixarei de lado esta estranheza: de ter o coração quase na boca e nem saber como respiro ainda. o resto, tudo o que não disse, por um acaso típico da morte, escrevo depois, quando o coração souber onde está. e se fugíssemos, eu e o coração, contigo, se por um acaso igual, típico da morte, nos levasses. só para um lugar de onde não saíssemos.










sábado, 23 de outubro de 2010
































Se tens um coração de ferro,
bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne,
e sangra todo dia.

josé saramago

















E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter. Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água do rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogamos o seu sentido. Nisto eu acredito: na verdade destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos. (…)Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. Tudo o resto são apenas palavras, sons, frases, coisas que qualquer um pode dizer. (...) Mas o silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado. (...) Nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrem os pensamentos vividos em silêncio. Um amor feliz precisa do turbilhão das palavras, das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do ruído das banalidades. Não há felicidade que não seja tantas vezes fútil, tantas vezes inútil.

miguel sousa tavares







nunca soube, não, existir. tudo ou se perde ou se mata. e quando penso nisto, volto. talvez os lugares não existam e as lágrimas esperem debaixo dos olhos. e talvez quando os olhos forem capazes de chorá-las todas, talvez então tudo faça sentido e a vida não seja tão deserta. por enquanto talvez tenha de continuar assim, com esta pedra no peito. o coração, nem sempre sei por onde vai, quando corre ou foge. nem sequer sei se existe. bem, debaixo da pele alguma coisa andará à procura das tuas mãos, disso eu sei e estou certa.














































sexta-feira, 22 de outubro de 2010


























Às quatro da manhã, arranco
     ervas daninhas do arrozal.
Mas que é isto: orvalho do campo,
                     ou lágrimas de dor?

                        herberto helder









Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.

Extraia a raíz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.

Parece-lhe decente que um engenheiro faça verso?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Aí, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.


gabriel celaya





uma pequena insónia atravessa a noite. foge. o coração segue com ela, ao colo. atrás dele um pequeno corpo, a pele treme. talvez de manhã te fale de como um corpo tropeça. entretanto é o sal que cai dos olhos e segue, atrás da insónia, na pressa de lhe dizer que dói. o coração dói e as palavras fogem quando o silêncio morre entre os braços.







quarta-feira, 20 de outubro de 2010
























Penso em ti e paro uma vez mais
                          o esquecimento.

                                  ulla hahn









Às vezes paro à porta
com o olhar perdido e habituado ao silêncio,
há mais desertos ainda, dias
e morte noutros olhos.
Com a garganta habituada à sede,
com os pés às feridas,
saio para a rua
e já não há umbrais.

Ando um dia, passo outro,
acabo uma semana de vidros partidos
e tosse mais velha.
Hoje parece que sempre
choveu sobre mim,
e não me importa
se a chuva já não se parece ao esquecimento
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
e fuligem e tristeza nos olhos de rímel,
ainda tenho sede
e não me importa
voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
à procura de algo que não encontro nem recordo,
que costuma principiar por um encontro,
talvez por outra palavra
e corre o perigo de crispar-se
até à forma da folha da faca.

Às vezes tudo é tão estranho
que não basta continuar a andar.


alfonso barrocal























quero dizer-te que todas as coisas, mesmo as sem nome ou tempo, sabem de ti. lembro-me da mesa me falar de ti, quando sentada ao canto relia as cartas que me escreveras. e a mesa lembra-te bem as feições, tantas vezes melhor do que eu de ti fala, que me parece que te ama mais a mesa do que eu. ou o amor, este que sinto, seria então decerto diferente do que a mesa por ti sente. uma mesa é,para além de uma coisa sem nome ou sem tempo, uma memória. sobretudo a dos teus cotovelos no tampo, ou a tua face cansada sob ele, os as mãos nele pousadas. e continuamente te lembro os cotovelos, a face, as mãos. e apareces-me sobre o tampo da mesa de cada vez que ela me fala de ti. esta manhã acordei triste. a noite parira nos meus braços uma ausência que, embora pequena, me começava a doer na pele. e a pele é também ela, por vezes, uma coisa sem nome ou tempo, uma memória. mais dura. mais funda. que a pele, para além das mãos, guarda o toque e cada dedo vive aqui para um futuro. esta manhã acordei triste, com um abraço tão apertado ao pescoço que quase o esganava. queria dar-to, logo pela manhã, com a luz calma. dizer: bom dia. à mesa, aos cotovelos, à face, às mãos, ao toque. mas nenhum bom dia é hoje.









troca por troca.













terça-feira, 19 de outubro de 2010
































diluída no quotidiano
fujo tão lentamente que
parece que fico

miriam reyes










Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

ferreira gullar









um dia morri só. era dezembro. um frio fazia fora. e dentro o corpo morto não falava. quando a mão acordou não havia outra mão, só ela aberta ao metal da cama. tudo muito pálido. e os olhos abertos à humidade do tecto e um rosto enorme, metido num corpo pequeno, a perguntar pelo meu nome. fugiu. não sei dele, atirou-se ao mar e foi com as correntes quentes para o sul. quis chorar mas o rosto enorme não sabia do meu nome, nem eu de mim. já tarde alta dei com ele, debaixo do corpo, enfiado num espaço breve entre o lençol e a pele. ficara ali o tempo todo. morri e ele ali. nasci e ele ali. quis pô-lo no lugar mas ele não quis, disse-me - já não sou teu. ninguém deve morrer sozinho e sem nome. penso. agora que as horas se encurtaram e o tempo corre. talvez um dia destes morra. talvez, de novo. talvez a mão acorde e seja outra vez só e o nome não seja meu. talvez. ou talvez eu não seja do nome nem morra nem o tempo seja tão curto. um dia quero estar certa de estar viva. ainda hoje quando acordo tenho o costume de chamar pelo meu nome. ainda acredito que possa estar escondido no espaço breve entre o lençol e a pele. um dia morri só. era dezembro. nenhum rosto era o meu por onde passava, só uma sombra muito grande me perseguia pelas ruas, em todas as esquinas, por todos os passeios, em cada beco. só aquela sombra grande e eu. quando parava ela parava, se eu andava ela andava. a certa altura corri, corri tanto e tão depressa para a despistar que quando dei conta já não sabia da casa, nem do corpo. tinha deixado tudo para trás. até os braços, que nunca me abandonaram, me faltavam. foi quando me sentei à espera que o corpo me procurasse, talvez com ele trouxesse a casa, que me apercebi que a sombra ainda ali estava. chorei.























        






































...se lhes gritasse:
"o amor entranha-se na mais pequena porção do espaço"
saberiam que falo do meu corpo?...

rosa alice branco









Todas as pessoas sozinhas dançam devagar na sala de espera
mesmo que o dia seja quente e convide a passeios ao luar.
A música é sempre a mesma, assobiada ao ouvido
por um rapazinho tímido e fechado do qual não se sabe o nome
e a destreza que podemos alcançar, neste querer dar o passo certo,
é apenas uma mínima ideia da força dos nossos desejos.
Todas as pessoas sozinhas sorriem em frente ao espelho
e lavam os dentes como quem arranca beijos à emoção
de ter ali, à nossa frente, alguém de quem gostamos muito.
A porta da rua é um lugar onde só se sai,
a nossa família é uma fotografia pendurada na parede
e os amigos são aqueles que nos dão bons dias no café.
Todas as pessoas sozinhas gritam baixinho os nomes esquecidos
que outras pessoas sozinhas lhes sussurraram alto uma vez,
quando ainda éramos todos uns dos outros.
Engomada a camisa, vestimo-nos com o cuidado solene
daqueles que vestem camisas com emoção e significado
enquanto esperam a hora certa para morrer ou nascer.
Todas as pessoas sozinhas todas as pessoas sozinhas
embrulhadas em lençóis frescos porque é Verão
a rebolar as dores de pescoço pelas duas almofadas da cama
e a pensar que de tanto dormir assim sem ninguém
vai ser difícil voltar a adormecer só num dos cantos do colchão.
Todas as pessoas sozinhas todas as pessoas sozinhas.



luís filipe cristóvão 










não, esta tristeza, não a entendo. talvez venha das árvores, com o vento forte nos ramos. ou do chão, da terra quase seca. não. sei que a conheço melhor que a todos os domingos. nem os domingos me fogem tanto. só desta tristeza não sei, nem de onde chega nem para onde vai. muitas vezes a adivinhei no silêncio, quando os braços correm para o chão. outras vezes era o chão que corria e os pés estáticos anunciavam o frio. pode ser só por ser eu. é de mim esta tristeza. talvez nasça dentro, com o sangue, ao redor do coração. que tenho um coração maiúsculo quando chove. e o tempo é tão incerto quando estou triste. não, esta tristeza, não a entendo. não. nem sei que acaso breve a traz ou que memória a retém. que sombra por acaso a demora. ou que sentido, se sentido houver, a alimenta. sei dela apenas o essencial. que chega e fica. sempre mais um pouco. tantas vezes durante dias é o coração que a embala e bate. talvez não seja minha, não. talvez seja este meu jeito. esta minha vida. talvez nada, nada seja. senão esta quase alegria. quase. quase. tão pouco sei eu desta tristeza, que se a quisesse dizer, em poucas palavras o faria. dela apenas os dias. quando chove ou fica húmida a terra. ou é o frio que faz crescer o musgo nos lábios. e faz silêncio. e dói no ventre. e fica por ali, tamanha tristeza a minha. e não dizê-la é ver chorar o mundo. eu sei que a tenho. talvez comigo fique para sempre, como uma memória que se não pode esquecer de dura. que longas são as noites em que choro, quando abraço o corpo pelo lado de dentro, com as vísceras. não sei. nunca soube. por onde escapa, onde se esconde, quando os dias encolhem e os olhos se abrem. e as longas noites. e a longa espera. talvez ninguém saiba. nem eu. nem ninguém tenha de a saber. nem eu. nem em nenhum lugar exista a não ser em mim. esta minha tristeza. que cresce de ano para ano como o mar. talvez seja feita de sal, também, ou de água. talvez só caiba no meu maiúsculo coração. talvez volte com os pássaros, por entre as nuvens. evapora-se. ao tempo que não a via. pois hoje, por dentro da tarde veio, na pele a chamar-me. inquieta. depressa entrou pela boca que pariu silêncios. depressa aqui ficou.  mas não, esta tristeza, não a entendo por muito que pense ou sinta.












domingo, 17 de outubro de 2010






































A minha vida é hoje 
um sítio de silêncio
                                               ruy belo










Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
- julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. Quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.

E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.

E isso que - talvez - nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).

Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.



manuel de freitas





primeiro desceu às árvores, ocupou-lhes a madeira, envelheceu-lhes o casco. mais tarde foi o céu cinzento, os pássaros sem asas. as flores, já não eram flores, secas. depois veio até ao rosto e ali ficou a amortecer a pele. as rugas, o frio. os olhos brancos, tão brancos. e os lábios de um roxo morto, pelo menos assim apareciam à boca quase sempre fechada. era outono. pelas ruas crescia um rumor deserto.





ne me quitte pas.




















                                                                                                                                                                                                               













Irreparável 










Há uma rotação irreparável do teu corpo
irreparável quer dizer que já não a podes parar
irreparável é alumbrada a alegria
o ar fugindo todo o mar subindo até ocupar
todo o campo do céu e
contudo
pudesses respirar o ar irrespirável.
Contra todas as evidências em contrário, a alegria


manuel gusmão


















tenho um amor sentado no (para)peito. do lado de dentro um pequeno coração, do tamanho de um berlinde, fala na língua dos homens. já os braços se cansaram de o segurar, já o amor cai. num lugar longe, imagino, uma cabeça pensa o coração do tamanho de uma caixa de fósforos e há dois olhos que choram, tanto. perto uma boca fechada chama pelo teu nome.


amour.

















quinta-feira, 14 de outubro de 2010

































"I used to talk to you all the time, even though I was alone. 
I walked around for months talking to you. 
I don't know what to say.
 It was easier when I just imagined you.
 I even imagined you talking back to me."
















paris, texas.






é preciso ter coração
para conseguir alcançar
as estrelas.












quarta-feira, 13 de outubro de 2010





















conta-me de amanhã. que futuro inventar com os braços abertos. que corpo deitar por terra. só por amanhã. como um bicho de conta numa história com final feliz. conta-me de amanhã. não faças de conta. quando o coração fechar e os olhos abrirem. só por amanhã. conta-me que o futuro é um bicho de conta. que não existe se fechares o coração.











ao meu bicho de conta.









terça-feira, 12 de outubro de 2010








































onde vais. em que peito bate o coração. que não estás. um lugar à tua espera é um corpo desamparado. tão perto estivemos das estrelas, por tão dentro da noite fomos à procura de luz. porque agora vais. por onde vais. para onde. inventamos a terra. dois lados do mesmo corpo, à espera. não sei porquê. talvez se mais longe fossemos. mais perto das estrelas. mais dentro da noite. se nos perdêssemos. e as mãos dadas fossem por onde vais.








care for you















sábado, 9 de outubro de 2010






































mãe
hoje atiraram o teu nome contra o meu peito

uma faísca na pele
do tamanho de uma estrela 

uma cicatriz rompeu na noite
fez-se luz. 
























já a terra deu a volta sobre si mesma e as árvores de pernas para o ar criam ninhos nas raízes. com o mundo ao contrário a mulher descansa os pés no ar, cabeça nas nuvens. há uma música ligeira que vem de longe, de quando nunca se estava só. trago atado ao peito um cordão de couro com as iniciais do nome póstumo - alice - chamar-me-ão assim quando morrer. lembro a poça atrás da casa, cheia de musgo ou de medo, e a nascente na gruta onde crescia a água, fria e funda com um beiral de pedra onde as velhas lavavam roupa. e o rosto da minha filha bóia com as folhas à tona d'água. queria não lembrá-lo. ao anoitecer meia dúzia de pintassilgos debruça-se na água, debicam as folhas miúdas. quase chove e eu sempre só. ao colo a memória do corpo pequeno e encharcado, os olhos escancarados, a boca roxa, muito roxa, pele azul, muito azul. alice. chamar-me-ão assim quando morrer.































pequeno espanador de tristezas [a derradeira confissão?]

há qualquer coisa de lágrima numa celebração minha.
se soubesse aceitar a beleza das lágrimas não tinha que [me] explicar a origem delas e podia sorrir com as bochechas molhadas mais vezes sem as rugas.
às vezes uma celebração minha é uma timidez – um dia tenho que conseguir abandonar isso e elevar-me a lesma, gambozino, helibélula. acreditar no fio que o grilo ata às estrelas lá longe no universo vincado de negrume; emprestar a minha pele numa jangada quase a afundar; afastar nuvens que dançam nas peles do mar; soprar uma madrugada pra ela voltar a mim [ainda gostava de ter uma crise de asma por excesso de nuvens nos pulmões respiratórios].
sem ser só nas palavras vividas em poesia, pra mim a morte devia ser um voo dançado por um papagaio-pipa – eu quero ser a aragem desse voar. se morrer um dia vou celebrar a palavra morte com incensos e música cantada por andorinhas – a morte anda por aí à solta e a vida afinal parece é uma máscara...
«a palavra vida é maior que a palavra morte», disse-me o meu sobrinho tchiene hoje que ainda faltam dezasseis dias pra ele nascer.
quando ele chegar ao mundo vou mostrar-lhe uma garça gaga que encontrei num poema e me passou a gaguez dela. eu passei a gaguez toda pra uma tarde e foi bonito ver a tarde esticar-se porque não sabia bem como pronunciar o definitivo pôr-do-sol. a noite ficou extenuada – à espera de chegar.
há qualquer coisa de adélia na palavra fé. talvez porque ela seja uma mulher de palavras pesadas com tanta leveza e saiba cavalgar medos selvagens. há na obra dela manchas leves de infância – essa varicela foi muito manuseada por luuandino [o que viajava com intimidade pelas ruas de antigamente, passando por tetembuatubia, kinaxixi, makulusu, olhos das crianças, pássaros e peixes]. certa noite, no lubango, vi o joão vêncio pendurado numa estrela; ao pé da casa onde sonhei nesse serão havia uma represa que era doadora de ruídos bons – apadrinhados por sapos gordos. espreitei pela janela fechada e quase cometi o erro de olhar um gambozino nos olhos. fechei os olhos e abri a janela, limitei-me a olhar assim as estrelas brilhantes numa ternura interna que eu lembro pouco de frequentar [no lubango a ternura brota em mim sem cerimónias].
às vezes uma chuva molhada é uma coisa boa para escorregar momentos em direcção a mim. quando uma chuva molhada cai sobre o mundo redondo, as coisas da vida e a vida das coisas encontram-se num quintal vasto. foi sob uma chuva molhada em canduras que encontrei as barbas do meu pai num poema e o sorriso da minha mãe noutro. foi nas entrelinhas dum poema ensopado que encontrei, várias vezes, a autorização interna pra falar a palavra amor [vou tentar não apagar isto: eu tenho certo receio da palavra amor, espero só que ela não me tenha receios também; seria triste].
foi com as mãos sujas de restos de amor que estiquei uma madrugada. quando digo a palavra madrugada também sinto um esticão no coração. se agora abuso muito das madrugadas é porque cada uma delas tem restos de amor que eu sempre vou perdendo. qualquer dia acumulo esses restos todos e faço uma construção de amor [talvez chame uma mulher pra se encostar ao outro lado dessa construção]. a palavra amor pode ser um labirinto com mais de catorze lados avessos. depois de esticar uma madrugada encosto a madrugada na minha pele e espero. a pele gosta de ser esculpida de novo muitas vezes na vida.
se puser um «v» na palavra esticar, poderei estivar uma madrugada. aí elevo-me a estivador de madrugadas e posso pensar num caixote com luar, um caixote com geada, caixotes pesados de estrelas, caixotes de nuvens carregadas de pingos, um caixote hermético com lágrimas, uma caixinha de costura com restos concretos de amor.
as palavras são muito bonitas também porque têm significados cicatrizados nelas – falo a palavra kwanza e sou invadido pelas belezas de um rio e o sol todo a bater-lhe nas peles da água escura que ele tem. o rio transporta o barro e os peixes e nunca ninguém se queixou de cócegas. há qualquer coisa de jangada na palavra rio. liberdade seria abraçar um jacaré sem lhe apetecer provar-me. eu queria fazer festinhas na carcaça antiga de um jacaré mas se ele me fizer festinhas magoa-me. vou olhar o jacaré de longe e o rio de perto – provar as minhas mãos nele. a pele do rio tem mais espelho que a minha e que a do jacaré. o céu e o sol gostam de verter reflexos nas peles paradas do rio kwanza e eu gosto de saber isso com os meus olhos atónitos de humidade. ali onde o mar beija o rio a espuma celebra o evento com pássaros que perseguem peixes. assim a poesia seja salobra ou salgada.
seria bonito ver os mangais depositarem raízes num poema meu – era a minha maior alegria fluvial.

há qualquer coisa de sapiência na palavra tristeza. e algumas tristezas não são de espanar – um dia posso descobrir que elas me fazem falta e ter que ir buscá-las na lixeira da catin ton.
vou encher-me de silêncios e imitar as pedras. adormecer entre as pedras pode ser que me contagie delas. depois de conseguir ser pedra vou exercitar o sorriso dessa pedra que eu for. com esse sorriso vou iniciar uma construção...

uma construção pode bem ser o lado avesso de uma certa tristezura.


ondjaki











































tantas vezes é a pele que me devolve 
a memória do teu corpo no meu
quando a chuva fria ocupa os braços
onde antes estiveram os teus.



























en la otra orilla de la noche
el amor es posible
--llévame--
llévame entre las dulces sustancias
que mueren cada día en tu memoria


________


no
las palabras
no hacen el amor
hacen la ausencia
si digo agua ¿beberé?
si digo pan ¿comeré?



alejandra pizarnik





































resta qui











sexta-feira, 8 de outubro de 2010













[foi julieta por chorar]
.





foi julieta por chorar
romeu distante
quem salgou o mar?




mário osório




















































# everything  will be ok













quinta-feira, 7 de outubro de 2010












tudo passava, por mim. tudo corria. uns dias, umas noites. o amor, o medo. tudo fugia. eu não queria esquecer, só lembrar menos. amor corria. e tudo era tão depressa que amanhã era sempre o dia seguinte e o tempo levava o corpo. um lugar nunca era o mesmo lugar. fechava os olhos. abria os olhos. já lá não estava. ou o lugar ou eu de mim fugia.





















































ao zé luís:



Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
no olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos
sexos das mães, afogavam-se em lama, no meio dos
sambos. As paredes das casas diluíam-se em nata e os
oleiros desistiram de encomendar a sua obra a Deus.
Enormes cuidados foram inventados para proteger o fogo
nos altares e as crianças adotaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em
chagas e as mamas das virgens, mal eram tocadas,
colavam-se aos dedos como cinza úmida. Os lábios dos
sexos das mulheres paridas inchavam carnudos de uma
carne branca e os ventres pendiam como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderam todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei do
Jau ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe
os olhos, que depois cegaram. As sementes grelaram nos
celeiros e essa semente assim era servida aos homens e
daí lhes ocorreu um tal vigor que os seus pênis cresceram
desmedidos e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e
mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos
buracos e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo
com esforço as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite
vicejaram musgos e o leite das vacas alterou-se em soro, a
coalhar na urina. Naquele ano a chuva choveu tanto que
até nos areais cresceram talos e as enxurradas
produziram peixe e até o ferro se lavou sozinho e os
diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas de moer
farinha. As próprias aves morreram quase todas e apenas
se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.
E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu
todo o sentido. As gargantas entupiram-se de limos
e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os
corpos e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando
mais tarde a chuva parou, das bocas saíram grossas
aves negras que abalaram logo daquelas paragens. E a
seca voltou e o mundo secou. A carne antiga a dar-se
agora em terra, os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouco a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido.

(Sinais misteriosos... Já se vê...)


ruy duarte de carvalho
































# primeiro dia. o dia seguinte. hoje. u.m.





























terça-feira, 5 de outubro de 2010

























# l'anniversaire



quero apenas cinco coisas
a primeira é o amor sem fim
a segunda é ver o outono
a terceira é o grave inverno
em quarto lugar, o verão
a quinta coisa, são os teus olhos
não quero dormir
sem teus olhos.
não quero ser...
sem que me olhes.
abro mão da primavera
para que continues
a olhar-me.

                                  pablo neruda.










ao meu amor, o primeiro e o último.

o teu rosto blindado de estrelas.
os teus olhos sempre dados à memória do beijo
dos lábios que ainda não se tocaram.
às vezes sinto-me quase só
como agora
é quando fecho os olhos e sinto a tua boca.










senhor Éme







domingo, 3 de outubro de 2010















o vento traz os domingos. e o coração: perguntas. não sei dizer-te. foi com o vento. fechou-se do outro lado da noite. às vezes penso que regressa e eu espero que o vento passe e não o leve. e é quando sinto as pernas correr que sei que é o corpo que foge com o vento e deixa ficar o coração. que o coração quando assim fica não volta. muitas vezes as mãos me quiseram deixar, voltar ao coração, abraçá-lo muito, até que o vento passe e leve os domingos. é o corpo que não as deixa, é o vento que o leva.










































picasso





































Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenha-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de flagrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, esta instantênea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

júlio cortázar


















A última palavra será a quarta dimensão.
Comprimento: ela falando
Largura: atrás do pensamento
Profundidade: eu falando dela, dos fatos e sentimentos
e de seu atrás do pensamento.

Eu tenho que ser legível quase no escuro.

Tive um sonho nítido inexplicável: sonhei que brin cava com o meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu.
Por causa desse sonho é que inventei Ângela como meu reflexo? Tudo é real mas se move va-ga-ro-sa-men-te em câmara lenta. Ou pula de um tema a outro, desconexo. Se me desenraízo fico de raiz exposta ao vento e à chuva. Friável. E não como o granito azu lado e pedra de Iansã sem fenda nem frincha. Ângela por enquanto tem uma tarja sobre o rosto que lhe es conde a identidade.
[...] Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescindo da realidade porque posso ter tudo através do pensamento.
A realidade não me surpreende. Mas não é ver dade: de repente tenho uma tal fome da "coisa acon tecer mesmo" que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, pres cindo da realidade real e me aconchego em viver da imaginação.»


clarice lispector








sábado, 2 de outubro de 2010


















toda a tarde.
todo o dia.
tanta coisa.


tanta.



















não fiques triste amanhã falo-te de amor, do sorriso agora amarelo da minha avó, das mãos sempre gastas do meu avô. depois talvez te conte de como a vida me tramou. se tiveres tempo choro contigo só um bocadinho. o corpo precisa de água. deixa-me dizer-te antes de afogares que o tempo não chega. e num dia de água como o de hoje, morri. morri abraçada a uma nuvem baixa que me ficou presa nos cabelos. depressa fui para o céu amparada por dois pássaros de pescoços altos e esguios e longas asas. nunca mais ninguém me viu. dizem-me as nuvens que sentem saudades minhas agora que nunca mais me verão. dizem-me que às vezes também como tu andam tristes. eu fecho os olhos e choro para dentro, é assim que se faz no céu. muitas vezes lembro os rostos das pessoas que amei, da avó e do avô. muitas vezes também eu tenho saudades. mas são os pássaros, os que vêm em bandos, que me levam para as terras longe. conheço muitas árvores agora. um dia quando tiveres tempo e quiseres falo-te delas. são árvores bonitas, de tronco grosso e braços longos no ar. muitas vezes fico a vê-las anoitecer, principalmente nos dias pequenos. vejo os bichos recolherem aos troncos e a chuva a adormecer a madeira. lembrei-me agora dos bichos, talvez noutro dia te fale deles. se tiveres tempo e quiseres hei-de contar-te dos insectos ou das flores. há muitas flores a nascer à raiz das árvores, até no inverno. não fiques agora triste, amanhã falo-te destas coisas quando tivermos chorado um bocadinho. em dias de água o tempo não espera, nem perdoa. não esperes para te afogares. vai conhecer os pássaros, as árvores, os bichos e as nuvens. são futuros mortos como nós.









































.......................................................................bom dia,
.............. amor

























Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.





pedro mexia








estremeço desde o princípio do meu rosto
desde o momento em que sorri e me sorriram
e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras
que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas
o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera

é a primavera de todos os outonos
é aqui que em silêncio se bordam os calendários
dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam
e não mais se alcançam se não nos tornamos menores
- no futuro não há esquecimento nem segredos
cada coração guarda apenas o que for mais comum

vasco gato







Há coisas
sobre
as quais
me quero
calar
porque
preciosas
de mais
precisas
de mais

Outras
porque
cruas
de mais
como
aventais



adília lopes