domingo, 30 de janeiro de 2011





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Limito tudo ao incerto. Os ruídos
do coração ou da alma ou o que
isso seja de concreto, ou abstracto.
Escolho ao acaso um livro, calço
estes ou outros sapatos, saio
de jeans ou de saias ou de fato,
escolho perfumes raros,
uma gravata, à refeição
um bom vinho
e tudo isto não ser de mim,
de ninguém,
qualquer retrato.



helga moreira





















não. não há nada aqui. se olhares de lado. de frente só o coração traz o teu rosto. de lado a história muda de figura. e o perfil é de abandono. não há nada aqui. só um cansado gesto. fugindo. e no gerúndio o resto é um coração vazio.








quarta-feira, 26 de janeiro de 2011













"
(...)

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.
E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caoss e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente
Serenidade, és minha."

Raul de Carvalho





sábado, 22 de janeiro de 2011



























~



tardava. tudo tardava. tanto que o vento corria. tanto. que tu não estavas. ninguém era. ninguém via. nunca. nada. nenhum lugar. nenhum dia. só te lembravas. só tu sabias. a tua boca. os teus dias. àquela hora não eras. ninguém era. nada ouvia. só. pela noite fora o teu nome à entrada do meu. a bater-me. o coração como um lugar de repente vazio. nenhuma memória. nem minha. nem sequer tua. nossa. ninguém chamava o teu nome àquela hora. nenhum lugar conhecia a tua cara. só pela noite o rumor lento dos dias. que passam. que foram. fugiam. do que foramos nada restava. nada era. nenhum sentimento já nos conhecia.








talvez soubesses de cor todas as histórias e mesmo as que não contei com vergonha que as contasses um dia mais tarde a alguém porque o coração sabe dessas memórias que a pele não falando conta quando a noite cai e as mãos conhecem o frio no corpo talvez soubesse que partirias uma noite dessas e levarias contigo todas as histórias que te contei como se fossem tuas as contarias a essas outras mãos na pele dos teus dias só não sabia que era tão perto o dia e tão curtas foram as noites e que agora todas as memórias tardias me devolveriam o teu frio queria de volta as histórias que te dei nas noites calmas nos dias frios de inverno quando chovia e os teus olhos esses dois grandes enormes olhos castanhos me pediam silêncio porque eu sabia que havias de partir um dia só não pensei que levasses contigo o meu coração e agora que já nada bate nem a vida é minha só quero que estejas feliz















sexta-feira, 21 de janeiro de 2011











era como se acordasse
a ferida aberta nos olhos
a mão dormente na cara
ainda vestias
o mundo
de pinheiros mansos
e pássaros do norte


esperas que alguém chame
o teu último nome
corpo


























segunda-feira, 17 de janeiro de 2011











tinha só ainda tantas coisas para te dizer. se te lembras da água, do vento, das flores, de mim. de todos os dias, de todas as manhãs frias, da geada nos braços a caminho da escola, da mão sempre dada à minha, de todas as tardes, do monte, dos socalcos, das ervas daninhas presas às pernas, de todas as noites à porta de casa o corpo me esperar. da chuva. dos ossos. da vida que dói. do tempo que passa. se te lembras de chorar, de ficar só. não esperes por mim. não volto. tinha só ainda tantas coisas para te dar. nenhum natal foi nosso, nenhum pinheiro e as mimosas não voltam nem a poça enche. e nem te dei o mar, nem a terra é nossa.



















sábado, 15 de janeiro de 2011



































Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?


eugénio de andrade





. a tua pele tão fria. era manhã. o teu corpo magro numa urna pequena. o teu cabelo curto. a tua pele tão pálida. nada te disse. não soube falar. chorava. toda a noite estive a teu lado, rodeada de memórias. levaram-te. nenhuma eternidade te esperava à entrada do cemitério. só meia dúzia de rostos tristes e eu. não pude levar-te ao colo. não soube falar. nem chorar. talvez o meu corpo fosse como o teu. frio. pálido. por dentro da terra.













deixa ficar o silêncio. um pedaço de terra tingido de mar. avó. deixa ficar. ando tão triste. todas as portas andam comigo. entreabertas. só um pedaço de mar. frio. no corpo ainda. que o corpo não sabe da tua morte. nem eu a digo. nem eu. avó. tenho saudades tuas. de quando fugias do tempo. da janela onde o teu rosto aparecia todas as tardes. não sei que fazer das portas por onde passaste. e as janelas já não batem com o vento. nem o coração. nem as tardes. e o tempo não foge. ando tão só. ninguém tão perto. avó. não chores. está tudo bem.
















terça-feira, 4 de janeiro de 2011



















francesca woodman












sempre tão só. noites tão frias. e a primavera fora e não tem volta. não há nenhum regresso. nenhum caminho tem este destino. só. não sei que fazer do corpo. nos cabelos o escuro. crespo. as mãos. murchas. e é sempre o mesmo adeus. todos os dias. mal amanhece. mal é dia. mal me quer. bem me quer. é madrugada. é choro. é riso. é tarde nos relógios e na casa. o teu rosto não aparece ás minhas horas. só.








segunda-feira, 3 de janeiro de 2011









às vezes falo de
mais
outras de
menos
algumas
assim - assim
sempre
nem tanto
nem nunca
nem
às vezes




















































era uma vez à entrada de uma casa. a porta quase fechada. o peito ao frio. os olhos tão dentro da cara. a cara tão dentro do pescoço. o pescoço tão entre os ombros. tão entre o corpo. o corpo tão dentro. tão entre. a vida. uma vez tinha nas mãos uma flor. tão pequena. tão murcha. tão morta. já. depressa. a geada. a neve. na casa. na porta. no peito. nos olhos. no pescoço. nos ombros. no corpo. na vida. uma vez triste tantas vezes chora. esta era uma vez assim. deitou os olhos aos pés. voltou o corpo. correu. já perto o tempo. passado. fugiu. como uma memória que não lembramos. uma vez.