quinta-feira, 26 de maio de 2011















Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.

sophia de mello breyner





o barco roubou ao mar as maiores ondas. foi numa dessas noites. quando o rosto da menina figurou a melhor metáfora do escritor - um grito soterrado - quero escrever sobre o sol. o fundo do mar. sem peixes. a escuridão devolvida à pele - finalmente a sós. despeço-me de ti como se estivesse a escrever o melhor romance. com final feliz. melodrama de sintaxe imperfeita - guardo para amanhã o adeus. a última página. o rosto em claro voltado para a água. sem pronto socorro. nem nada. só uma luz muito pura a impede de ir.
















segunda-feira, 23 de maio de 2011
















Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura








quando eu morrer. se eu morrer. manda construir uma ponte sobre o precipício. escreve cartas do mundo dos vivos. descreve-me os lugares. as árvores. fala-me dos pássaros como se eu tivesse ainda ouvidos. ajuda-me a voar. guarda as estações. que eu não regresso. nem para assustar quem me fez mal. não regresso. mas quero ouvir a tua voz do outro lado do mundo. sentir os teus lábios ainda no meu ouvido: não partas nunca mais - não. em nenhum outro lugar poderei ser tão feliz. nenhum pássaro será tão livre. não haverão assim árvores bonitas. como nos teus olhos. em nenhum outro lugar.








domingo, 22 de maio de 2011






































Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.



herberto helder














contam-me uma história. de um amor feliz por outras terras. mais frias. um coração que adormece enterrado na neve - quis ser tua amante. levar-te para as terras altas. onde o frio das manhãs brancas sobe troncos. as árvores estão como mortas. quis ser tua amante para te contar todas as histórias de um amor feliz. decorei as palavras. todas. para tas dizer baixinho ao ouvido. nos lábios guardo toda a beleza do mundo que já vi. o outro mundo. o teu. o que tu viste. fala-me dele quando adormecer for difícil como agora - enquanto o amor quiser hei-de escrever. manhãs tristes. noites inteiras. enquanto o sal durar dentro das lágrimas - tarda. já tarde. noites fora nada me chega. e um abraço era tudo o que queria para sossegar a saudade na pele. ainda não aprendi a estar quieta. durmo como se corresse. por entre as ondas vou ao teu encontro. o corpo dói pela violência da água. forte no peito. ossos para dentro dos órgãos todos - quero chorar muito. fugir dos nomes. dos rostos. do mundo. um dia hei-de morrer e o corpo quieto será velado pelo teu. contarás a história de um amor feliz por terras amenas. onde as árvores sonham deitar a copa nas nuvens.











sábado, 21 de maio de 2011





































e eu que sou louco, um pouco, não ao ponto de ser belo ou maravilhoso
ou assintáctico ou mágico, mas:
um pouco louco,
porque faço com mãos estilísticas um invento fora e dentro dos estados
naturais:e a faúlha e o ar à volta dela, jóia, digo, quero-a de repente,
e as matérias maduras e dramáticas: ouro, petróleo:
e com que potência madibular me debruço sobre o prato,
e ávido e inculto,
com mão aprendiz côlho o áspero alimento do mundo,
e rosto, membros, torso, radiações dos dedod,
trabalho no meu nome,
obra pequena de hemoglobina, enxôfre, células, osso, lume,
para estar mais perto de quem acaso me chame ou toque
---- eu,
sem beleza nem maravilha,
só dor,
desamor ou descuidada memória ----
mas mr conheça por isso que não é bem música,
talvez sim um som
dificílimo, sêco, acerbo, rouco, côncavo, precaríssimo
de apenas consoantes,
pregos



herberto helder







aquele louco sorria. a pele cabia-lhe exactamente no corpo. tremia. os olhos eram cinza escuro quase preto. não havia céu e o silêncio absurdo. nas pernas. nos pés nus. quietos no asfalto. - olha para mim - a cidade foge-lhe. nenhum rosto o encontra. só o tempo o espera do outro lado da estrada. os loucos também têm memória. o cabelo era a reentrância do espanto. - quando anoitecer. se anoitecer. levo-te para casa. e olhavas para mim sem nome. como todos os loucos.














































A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

herberto helder




quero o silêncio dos teus braços. o socorro do teu corpo. o coração.










































zeynep kayan






As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada

al berto





para onde voam os pássaros. juntos. como palavras deitadas ao vento. houve coisas que te queria ter dito com a mesma força com que os pássaros se lançam ao céu. como por dentro das nuvens o mundo é maior. ou a força do corpo que quieto sonha contigo. às vezes só na companhia dos móveis encontramos o afecto. ou a sua falta se reproduz de tal maneira na pele que choramos um pouco. chorar não é mau quando estamos na companhia dos móveis. e sei: não se pode adiar o voo. vou com os pássaros. manhãs claras de maio esperem-me noutro ano.


























o teu amor, bem sei, é uma palavra musical,
espalha-se por todos nós com a mesma ignorância,
o mesmo ar alheio com que fazes girar, suponho, os epiciclos;
ergues os ombros e dizes, hoje, amanhã, nunca mais,
surpreende o vigor, a plenitude
das coxas masculinas, habituadas ao cansaço,
separamo-nos, à procura de sinais mais fixos,
e o circuito das chamas recomeça.

é um país subtil, o olho franco das mulheres,
há nos passeios garrafas com leite apenas cinzento,
os teus pais disseram: o melhor de tudo é ser engenheiro,
morrer de casaco, com todas as pirâmides acesas,
viajar de navio de buenos aires a montevideu.
esta é a viagem que não faremos nunca, soltos
na minuciosa tarde dos lábios,
ágil pobreza.

permanentemente floresce o horizonte em colinas,
os animais olham por dentro, cheios de vazio,
como um ladrão de pouca perícia a luz
desfaz devagarmente os corpos.
ele exclama: quando me libertarás da tosca voz dormida,
para que seja
alto e altivo o coração das coisas? até quando aguardarei,
no harmonioso beliche, que a tua visão cesse?



antónio franco alexandre








às vezes o tempo pára. quando nos damos as mãos. o corpo todo nelas. e a boca na boca à margem da palavra. tão pequena. a luz forte do sol por detrás do rosto. quieto. nem as árvores mexem. um cheiro a terra. forte. a voz no ouvido: não fujas. amanhã é tarde para o coração. e eu sei teus olhos são a chuva. a tempestade. pela manhã o silêncio que acorda. durante a tarde a secura da pedra. fomos. decerto sobre nós só as manhãs claras ou as tardes de maio. amanhã é outro dia e os dias passam. não fujas.










domingo, 15 de maio de 2011




































As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

herberto helder






do silêncio um beijo. se duas bocas fossem como cair do nono andar de um prédio antigo. no centro da cidade. onde as paredes abandonam o ruído dos corpos que não se abraçam. eu quero muito abraçar-te. por cima das nuvens construir um prédio. alto. que desse para outro mundo. um mundo onde corpos se abraçassem. onde beijos fossem palavras como: amor. e barcos voassem dentro dos olhos. e tudo fosse um mar de ser feliz e sorrir muito.










































Esta mulher é formosa
como uma flor da montanha,
mas é fria, fria, e é fria
como a margem de neve
onde fria floresce.

herberto helder





só não sabemos por que dói às vezes. por ser deserto por certo. também o coração não tarda a existir dentro de todos os corpos que amei. fico em silêncio. nenhum movimento me pertence. quero dizer-te hoje que está um bom dia. para correr. para chorar um pouco. para escrever sobre estas árvores de onde subitamente se levanta o vento. estou só. ando há algum tempo só. talvez por ser assim mais fácil esquecer o coração. há rostos que te lembram da vida. queria também dizer-te que faz frio no azulejo e os pássaros procuram no telhados lugares para fazer ninho. quero um ninho posto do lado esquerdo do peito. talvez também por ser deserto fico sem voz. há qualquer coisa de descoberta em não ter voz. em doer-nos o mundo. lá fora. fico quieta. talvez algum pensamento me visite. este domingo está fresco.









segunda-feira, 9 de maio de 2011

































Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

clarice lispector




não é tarde. talvez daqui a algum tempo te olhe nos olhos e te diga: para sempre. até lá não é tarde. nunca mais. meu bem. tarde só em sonhos. quando os não tenho. ou quando por não tê-los durmo mal. as noites são por defeito minhas amigas. como as nuvens ou a chuva. ou o frio nos arraiais. é verão e decerto em hora já tardia o coração não sabe o que dizer. melhor esperar. silêncio. amanhã falo-te dos dias da minha infância. onde fui feliz. por não conhecer o mundo. hoje talvez o mundo seja essa coisa feia. mas aqui ainda moram os campos da minha infância. com cores que já não existem. quero trazer-te para aqui. sossega coração só. amanhã o futuro chega. até lá vamos por aí conquistando terra ao coração.













domingo, 8 de maio de 2011
















esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


al berto





a paixão tem manhãs de água. onde dormes sossegada. sob o lado esquerdo do corpo. o rosto voltado para a janela. leve luz na pele. o braço descoberto. vontade de ficar para sempre aqui. na feliz memória do teu corpo dormindo. a paixão vem sempre que te lembro. o corpo pequeno. quieto. sossega coração. não vou. nenhum outro lugar é meu. em nenhum outro mundo seria tão feliz. descansa. amanhã outra manhã nos espera. uma memória. a mesma.





















Acreditei que se amasse de novo
Esqueceria outros
Pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
Organizei a memória em alfabetos
Como quem conta carneiros e amansa
No entanto flanco aberto não esqueço
E amo em ti os outros rostos.

ana cristina césar




dentro da pele guardo essas histórias. tempo de abraços. e nenhum de nós aqui ficará para falar do lugar onde nos amamos. como se habitássemos ainda as nuvens. e nenhuma árvore tivesse descoberto dois corpos assim tão dados. que nem vento passava entre as peles. nem nada. fomos felizes. decerto. ninguém nos tira esse lugar onde fomos felizes. que levaremos connosco para debaixo de qualquer terra. ainda penso muito em ti. sei dos teus olhos. enormes castanhos. o mundo inteiro à minha espera. contavas nos dedos os anos como chuva. sabias de cor o nome dos meses. os dias. os anos. fomos sempre felizes. no tempo em que nos conheciam as águas. as flores. todas as noites. estrelas. o próprio silêncio. cúmplice dos melhores amantes. nos acompanhou. velaram o teu corpo quando morreste. sei-o. tão perto sempre estiveram. tão perto. impossível seria não lembrar-te neles. a boca. o beijo. um beijo de dias inteiros. para sempre.










































A que se referia?
- À morte – respondi.
- Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a pensar o
mesmo.
- Pensamos todos no mesmo a partir de certa altura.
- Talvez – murmurou, e a voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos de igual maneira. Sou forte. Por isso é que penso nela. Detesto a fraqueza que se remedeia na imaginação, nas hipóteses. Não creio em nada. Não desejo crer em nada.
- Pensa que vai morrer quando quiser?

herberto helder









os dias passam por nós. tão breves. ninguém repara. ao fim de um dia outro começa. quando acordamos há outro corpo deitado. quando deitamos o outro corpo levanta. nenhum dos dois se sabe vivo. nem a si nem ao outro. os dias atrás dos outros. passam. em nós o tempo faz histórias. que depois contamos uns aos outros. como memórias ou segredos. vários. às vezes queria reinventar essa trio: passado. presente e futuro. criar outro mundo onde deixar a existência. fugir depois selvagem como as águas. por dentro da terra. construir passagens secretas entre os tempos. renascer.









quinta-feira, 5 de maio de 2011






























Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.


daniel faria










dizem que foi céu fora. com o vento. ao colo levava todos os lugares onde foi feliz. não sei. não vi. não voltou. não tive como falar-lhe e tenho pena. e magoa. nenhum regresso foi mais esperado. talvez uma nuvem baixa a carregue dentro. já morta de ar ou medo. às árvores fui contando tudo. na terra esperei outras primaveras. mais felizes. tive saudades. tenho saudades. os olhos são duas esferas baças.tenho tanto medo de ficar sozinha.









segunda-feira, 2 de maio de 2011


































Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas,
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou ainda
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida, desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.

herberto helder






tantas vezes o teu nome. chegado de ontem. não sabe do meu. paisagens da minha infância. países de verde musgo e sal marinho. barcos voltados para à terra. ao colo a boneca de trapos. falta-lhe um braço. o meu já dormente. se soubesse escrever poemas. dizê-los em voz alta às árvores. às mais altas montanhas escrevi histórias. no seu cume apanhei nuvens - era uma vez um coração livre que voava, ia com os pássaros - o vento preso aos cabelos. a tornear os troncos. tantas vezes fui com o vento manso do sul. conhecer o azul dos mares. - leva-me para dentro da noite. apanho uma estrela e vou conhecer outros planetas - dizer o teu nome é conhecer o mundo. contar a pele de todos os corpos sós.













domingo, 1 de maio de 2011

























"… cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu.
A voz era tão macia que até doía ouvir.
A música chamava-se "Una Furtiva Lacrima".
"Una Furtiva Lacrima" fora a única coisa belíssima na sua vida.
Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira.
Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era.
Quando ouviu começara chorar.
Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos.
Não chorava por causa da vida que levava:
porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que, com ela, era "assim".
Mas também creio que chorava porque, através da música,
adivinhava talvez que havia outros modos de sentir,
havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma.
Muitas coisas sabia que não sabia entender…"

clarice lispector








quando chorava. doíam-lhe todos os meses. e os anos passavam. lentos. a pouco e pouco todos parecem lembrá-la menos. a sua falta só no silêncio da casa. o lugar sempre vazio no sofá. a sua voz. tão triste. que me dizia - é noite todo o dia nesta janela- também eu chorei. no dia calmo de dezembro. em que não chovia. e as nuvens altas cantavam. partiu sozinha. nenhum anjo a esperava. nenhum deus a levou. foi com o sol.