segunda-feira, 31 de agosto de 2009

gostava de ser simples mas a dor era-lhe um labirinto de enredos. chorava quando não sabia rir e ria quando não sabia chorar, as emoções eram-lhe frágeis, como pétalas de um nenúfar a afogar-se. o coração era-lhe palco de tristezas, dessas que chegam de manhã e duram o dia inteiro, ficam, a sussurrar lágrimas na epiderme de todas as peles. nunca soube de que lado do peito lhe doía mais, mas o esquerdo era-lhe mais pesado e por isso cambaleava. gostava de nomear as ruas, sempre as mesmas, por onde se perdia quando se esquecia do nome que era. gostava de ser simples mas era feita de silêncio e os silêncios são lugares complexos.












e é já amanhã.




















pediu-me um beijo que lhe mutilasse o coração, depois fugiu-me da lembrança, do preto e branco das fotografias, para se ir afogar nas minhas lágrimas. lembrei-me então de todas as figuras da minha infância, passavam-me uma a uma rente aos olhos, rostos guardados em álbuns velhos, perdidos na gaveta da cómoda, que nunca ninguém se atreveu sequer a abrir. e é ao regresso dela que se entorpece a minha memória. sempre tão triste e tão bonita, tão bonita e tão triste que até pela boca lhe choravam as palavras. a liberdade é escrava da ilusão e ela sabia-o melhor do que ninguém.

















munch,
weeping nude,
1913











Quando eu era criança os velhos escolhiam
dias amarelos para morrer. Trazia
os pés descalços sobre muitos caminhos
como se não ouvisse a minha mãe
a chamar-me para dentro.
O céu pesava avermelhadamente sobre
a minha cabeça como o linho sobre os mortos.
Depois houve muitos invernos.
Intempéries de silêncio debaixo das arcadas
anunciaram o fim do mundo.

Quando eu era criança as paredes de casa
eram permeáveis à luz. A minha mãe
tinha a densidade interior de uma mesa
e braços extensíveis como archotes
para fora ou bosques de bétulas.
A minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido.
Quando eu era criança a tijoleira da cozinha
representava constelações e eu esperava
pacientemente o dia da ira do Senhor.

Quando eu era criança anoitecia
sobre a verdade intrínseca de haver ruas
pequenas e horizontes pequenos no fundo
das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira
da porta nas noites de verão e as raparigas
sangravam demoradamente o calor
para dentro dos pulmões e cresciam-lhes
os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu
era criança a minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido.



José Rui Teixeira


músicas que nos fazem chorar serão sempre boas músicas. esta é uma delas...

domingo, 30 de agosto de 2009











Levar Del Sole de Monet
* não fosse hoje domingo e correria por dentro do tempo só para te amansar o olhar com um sorriso. estou cansada. nunca mais é setembro.
esperei indícios de ti, gestos ocultos, como um simples dar de mãos ou acalentar a pele, esperei o deserto e sempre de ti tive os gritos mudos, quietos, de quem sofre tudo ao mesmo tempo. e sem me pertenceres perdi-te, como quem perde a vida e nem se dá conta. agora, que de tempo a tempo me visitas em lembranças, quero que saibas que a tua morte ainda por aqui ronda.

sábado, 29 de agosto de 2009








Femme aux Bras Croisé, por Pablo Picasso
não consigo respirar.
do outro lado do mundo não se apertam as mãos,
apertam-se os corações e os cumprimentos habituais sangram-me no peito.
quero voltar para casa.

p.s.sabem para que lado se aperta o coração?
no sentido inverso aos ponteiros do relógio,
até ao tempo em que não era preciso pedir um abraço.
haviam no teu peito mil fontes
abertas sobre rosas tristes de velório.
havia uma fragata e um rio próximo, onde boiavam árvores mortas
e havia, na mais clara nitidez,
uma esperança, uma réstia de esperança,
onde se cravavam dores mais fundas
e onde corriam os juncos,
rio abaixo, até à queda altiva da água toda.
havia no teu peito um coração
perdido entre o que se diz quando se ama
e o que se perde ao partir.
"Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!"


mário sá carneiro

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

este mês, quero:
#empapar bolachas maria numa tigela de cevada; #conseguir dormir mais do que quatro horas por noite; #aprender a acordar mais devagar; #dar-te um beijo de bom dia; #ver o "meu querido mês de agosto"; #ir ao cinema e rejubilar de novo em hitler; #tornar-me uma inimiga pública; #caçar uma perdiz (sentido metafórico); #levar-te ao parque da cidade; #telefonar aos meus pais e acabar a chamada sem chorar; #dizer a expressão rais-ta-parta sem ser censurada; #passar um dia sem me lamentar da merda de vida que tenho; #comprar fruta; #fazer salada de fruta (esta está inteiramente ligada à anterior; #cozinhar batatas a murro; #ir a pé até ao cabedelo e ver o rio ser mar; #não ouvir carlos do carmo durante a próxima semana; #ser capaz de não emprestar dinheiro a ninguém; #aprender a dizer "não" quando me perguntam se está tudo bem; #encontrar as minhas luvas de rede; #ir a casa pelo menos uma vez neste mês.
nada temos a ver um com o outro.
é onde te encontras que eu me perco.
mas existe uma certa completude nesta forma assimétrica de amar.
se há dois meses me dissesses metade do que hoje não dizes,
desaparecia. hoje fico.

o amor pode ser doloroso, mas não deixa de ser amor.






* hoje dancei ao som da "billie jean" de michael jackson. o que o cansaço faz às pessoas. 





tenho saudades de empapar bolachas maria numa tigela de cevada, ficar à janela com uma manta a cobrir-me os joelhos e esperar que seja noite às cinco da tarde, e é sempre noite às cinco da tarde quando tenho saudades de empapar bolachas maria numa tigela de cevada. tenho saudades de ver chegar o pai, sentir-lhe a sombra ao fundo da quelha a vir, por entre os muros cheios de silvado. tenho saudades das tuas mãos, tão velhas! as tuas mãos nos meus ombros como que a dizer-me: está tudo bem. e não é que está sempre tudo bem quando te recordo ainda que em saudade, avó?
às vezes ancorado a um
sítio como a uma palavra
dessas que se gastam
e depois já não se gostam

a um som. dos que entraram
na íris, por uma abertura
na falta de ar, e saíram
para o bolso,
esse beco que temos sempre
de um lado ou de outro
das calças que forram as pernas
que correm na memória, e fogem
levando o bolso
cheio

às vezes ancorado a um
sítio como se fosse às vezes
ancorado a dois.




manuel cintra








* tem um jeito prosaico no andar, um delicado e acerbo alçar de pernas, um modo súbtil de dizer com o movimento: "anda, fode-me!". a vida é mesmo assim.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

#282









* amo-te.








#281



frida kahlo

#280

parece-me simples este cerrar de mãos, sentar-me a um canto, esperar a vida com a morte atrás dela. talvez aqui o tempo passe mais depressa, talvez daqui tudo pareça mais fácil, talvez aqui encontre o que me procura. sento-me. há qualquer coisa triste em estar aqui sentada, talvez o perfil triste da cidade, à noite, vista daqui. talvez não. talvez seja só eu a imaginar-me mais feliz, a acreditar-me em riso aberto sobre as estrelas, talvez seja só eu. espero.

#279

#278

*Mas tu nao sabes o que é a gente acumular uma data de pormenores para chegar a encontrar alguma coisa de real!

Carson McCullers

#277

pergunto-te só se pode ser-se feliz assim. pergunto-te só se é possível privar o coração de certos comodismos, como a certeza de um amor.  creio que sim, e é para mim que falo agora. creio que sim. abano a cabeça pela antevisão da dor que se aproxima, se me pertence? se é minha? direi que sim, embora sinta o medo a tomar-me conta das artérias. se me explodisse o amor agora, para sempre, se me fosse possível matar lentamente estas estrelas. 

#276

* a verdade é a mentira em rebanho, como dizia nietzsche. 

#275

# quero parar de chorar e começar a dormir. já. rápido. 

#274



edvard munch, o beijo, 1897

#273

quando viver dói
deito-me de costas
e vejo estrelas numa noite onde não as há.
falo, falo, falo
e tu a apontar-me em silêncios...

#272

a minha alma, fugiu pela torre eiffel acima, - a verdade é esta, não nos criemos mais ilusões - fugiu, mas foi apanhada pela antena da TSF que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…
(em todo o caso que belo fim para a minha Alma)!...

por mário de sá carneiro.

#271

"Deus morreu. Não digas que isso é absurdo e ininteligível, só porque as seitas religiosas enxameiam hoje o mundo. Porque é quando uma doença é incurável que há mais abundância de remédios para a curar. Como a proliferação de religiões no fim do império romano era o sinal de que a religião de Roma estava a acabar..."

Vergílio Ferreira

#270

"se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor visse
se ela saltasse fora da garganta
como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir saliva fora
sujar a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre e tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos essa dor sangrasse... "

josé saramago

#269

#268

quero esquecer-me das coisas e do mundo em geral, ficar na penumbra a vislumbrar o perfil da vida e ter a certeza que deste lugar todos os sentimentos me parecem pequenos, suficientemente pequenos para não me sufocarem. quero empurrar a dor para fora das veias e ser capaz de a sangrar toda de uma vez, viver depois como se tivesse acabado de nascer e desconhece-se o sofrimento dos gestos, a crise dos afectos, a solidão deste corpo. talvez por agora me pareça boa ideia ficar por aqui, no limiar de qualquer movimento, à espera que me dês a mão e me mostres um caminho mais fácil.

#267



se conseguisse escrever a ternura do teu olhar pai, o aconchego.



poema à minha mãe:

mãe
há duas coisas que preciso dizer-te

entre a chávena repousas a mão
fria a mão, a tua, a que te amputaram à nascença.
o cotovelo gasto preso ao pó da mesa,
longe do braço,o teu, o que nunca foi perto.

há duas coisas que preciso dizer-te
mãe

duas mortes são o teu pequeno almoço
bem como um assalto à mão armada.
notícias da tua manhã, nossa.
ainda estás longe.

mãe.

tu gritas
tu levantas a mesa
tu choras um pouco
tu foges à pressa

mãe
há duas coisas que preciso dizer-te

a rua a servir de casa aos teus pés desesperados
fracos os pés, os teus, os que agora se encostam à berma.
a mão repousa ainda sobre o teu peito,
fria a mão, a tua, a que te amputaram à nascença.

grito: mãe. eu vou embora e não volto.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

#266

nunca soube muito bem onde suicidar a minha infância,
afogá-la em lágrimas sei que não resulta,
matá-la em risos muito menos,
fico-me pelas longas memórias que dela tenho.
e pelas tuas mãos, mãe,
a tatuar de dores o meu corpo. 

#265

quero encontrar um lugar onde sangrar todo o amor que te tenho,
escrevo lugares e espaços em tempos diferentes deste
para estar certa da curta melodia dos afectos, 
esqueço-me de outros lugares, profundos
como a inexactidão dos nossos braços juntos,
porque eu só queria encontrar um lugar onde perder o mundo
e a vida com ele e amar.

#264






ao amor.

#263

# há qualquer coisa hoje que me faz chorar. talvez a melodias das nuvens ou a nostalgia de mais um nevoeiro sem dono. 

#262

subitamente, talvez me pareça agora longe sem o ser,
uma criança empurra um amor varanda abaixo.
eu não respiro, respirar é a arte dos que não sentem,
e morro
subitamente, até que de dentro dos pulmões
se levantem as palavras, pintadas de silêncios,
caiadas de esperas longínquas. ainda me lembro
quando esta criança trazia nas mãos o destino
e cruzava a rua sempre pelo lado contrário. ainda
me obrigo a lembrar-lhe as feições tristes e
os gestos indecisos. subitamente.  

#261






contigo aprendi que não fazer nada até tem uma certa graça.

#260

a solidão de dois passos pode pesar mais no coração do que uma vida inteira. é assim que me sinto sempre que me afasto, costas com costas, mãos atrás destas, a pedir aos olhos para não chorar a prematura despedida dos afectos. é assim que me sinto quando te deixo, à boca de todas as ruas, e de tantas vezes te deixar temo que um dia ao regressar te não encontre. as pessoas mudam de lugar como quem muda de roupa, as pessoas mudam de pessoas e eu não quero mudar de ti, sair daqui. as pessoas preferem a solidão de dois passos a um sorriso, eu não. talvez tenha perdido esse jeito de ser pessoa, talvez tenham sido as pessoas a perder o jeito de serem como elas próprias. não sei. gostava apenas de não ter de te deixar tantas vezes.

#259

* estou apaixonada.

#258

#257

O egoísmo vale o que valer fisiologicamente quem o pratica: pode ser muito valioso, e pode carecer de valor e ser desprezível. E lícito submeter a exame todo o indivíduo para se determinar se representa a linha ascendente ou a linha descendente da vida. Quando se conclui a apreciação sobre este ponto possui-se também um cânone para medir o valor que tem o seu egoísmo. Se se encontra na linha ascendente, então o valor do seu egoísmo é efectivamente extraordinário, — e por amor à vida no seu conjunto, que com ele progride, é lícito que seja mesmo levada ao extremo a preocupação por conservar, por criar o seu optimum de condições vitais. O homem isolado, o «indivíduo», tal como o conceberam até hoje o povo e o filósofo, é, com efeito, um erro: nenhuma coisa existe por si, não é um átomo, um «elo da cadeia», não é algo simplesmente herdado do passado, — é sim a inteira e única linhagem do homem até chegar a ele mesmo... Se representa a evolução descendente, a decadência, a degeneração crónica, a doença (— as doenças são já, de um modo geral, sintoma da decadência, não causas desta), então o seu valor é fraco, e manda a mais elementar justiça que ele subtraia o menos possível aos bem constituídos. Ele não é mais do que o parasita destes...

Friedrich Nietzsche

#256







ainda hei-de aprender a arte da solidão.

#255

* os últimos dias foram um regresso às origens. um regresso a mim própria talvez. com concertinas e fogo de artifício.

sábado, 22 de agosto de 2009

#254

vãs memórias:


há qualquer coisa que incomoda, que rasga a pele neste tempo, que atravessa as paredes da alma para ser presença perpétua. há qualquer coisa que se intromete, que interrompe a vida e dá alguma graça à morte, qualquer coisa que desfaz o gelo dos pólos do corpo e faz naufragar os barcos, qualquer coisa que nos afoga em lágrimas. há qualquer coisa que incomoda, que pesa nos pés ao ponto de não conseguirmos caminhar, que rouba as palavras e as devolve em silêncios, que mata os órgãos, um a um, de dentro para fora, qualquer coisa tão dentro que a mão não a sente mas o coração toca, qualquer coisa tão forte que o peito inchado rebenta. qualquer coisa que basta para que nos empurremos ladeira abaixo. parte incerta que acanha, esmorece, amedronta e tece de morte a vida.

#253







penso,

logo sobrevivo.

#252

se do fundo da garganta aos dentes a areia do teu nome,
se riscasse com a abrasadura, se
em cima e em baixo mexido às escuras,
o forno com a mão a ver se ela podia
que uma púrpura em flor fosse até ao coração,
unhas e tudo,
que estremecesse, não por dito mas sabido
contra ti, e por artes
antigas trazer o ar, fazer uma
iluminação:
mudar o mundo para que o nome coubesse,
vivaz, tocado, fértil,
houvesse um dom inseparável, música, verbo:
se eu pudesse, se a terra
se atrasasse,
se pudesse em amarga língua portuguesa com o teu nome em qualquer
parte,
para eu mesmo riscar contra ti,
raiar contra ti,
sob
serapilheiras de sangue


herberto helder

# 251

tenho meia dúzia de recordações a morder-me o coração. dói

#250

* a minha noite: um copo de licor beirão, o ofício cantante do herberto helder, o voo nocturno do palma, um lápis e uma folha A4.

#249

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

#248

.sobre a ofélia e o baltazar. sobre quando os desenhei em são bento enquanto te esperava. sobretudo sobre não os teres levado contigo. fica para a próxima.

#247

ainda dia vinte de agosto de dois mil e nove.

todos os nossos dias serão cúmplices.
como os gestos ou  os olhares ou os encontrões às esquinas.
somos  duas metades de um só coração.
dois pequenos nadas num enorme tudo. 








queria que o dia vinte de agosto de dois mil e nove se estendesse por toda uma vida.

#246

com sono não se escrevem poemas: grito.
portanto hei-de acomodar-me a um qualquer canto, abraçar-me a mim própria, hibernar a dor ao fundo do coração. hoje apetece-me, rasgar de medo a raiva e de raiva o medo, deixar fluir o amor, deixar-me morrer nele. não me apetece acordar amanhã.

#245

Aproxima-te. É assim que consegues encontrar
algumas palavras. Estão juntas. Têm um sentido
capaz de vir acompanhar-te como se pelos dedos
escorresse um pouco de água, a sua transparência
súbita. Recebe o que elas te podem dar agora,
a respiração que fica tranquila e o mesmo aceno
só para que depois consigas compreender
como é fácil que tudo se perca nos teus olhos.

fernando guimarães

#244

#243

* bom bom é: um chupa-chupa de morango em jejum, dançar ao som dos heróis do mar, beber licor beirão, deitar-me e ter saudades de te ter aqui. 

#242

.dia vinte de agosto de dois mil e nove.

.percurso. 








amanhece sempre mais depressa no coração que te espera.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

#241

Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que
instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas,
tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço
como sinfonia.

Bernardo Soares

#240

na versatilidade de todos os acordares, já madrugada alta, quando as gaivotas se levantam em voos oblíquos a rasgar de penas o horizonte, penso subtilmente em ser o inverso desta imagem, e renascer manhã feliz. porque há lugares que habitamos ambos, como se nos pertencessem já antes de todas as noites, e há tempos desertos entre a epiderme de duas peles, a coexistirem livres em corpos que se conheceram muito antes de anoitecer. são estes tempos que dão significado a uma estirpe de gestos prematuros, caídos como vento na sacada, à espera de alvorar sentimento novo. 

#239



nas ramagens de um amor, o de sempre.

#238

penso o tempo e recordo-me
de amanhã.
já amanhã entre as margens
do rio, nós.
já amanhã.
e parece-me tão distante
o amanhã...

#237

terça-feira, 18 de agosto de 2009

#236




espero por ti.

#235

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além,
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


mário de sá-carneiro


*porque chorei quando o ouvi da voz do cesariny,esta manhã,aqui. e recordei um texto que escrevi em tempos ao ler o seu "céu em fogo", era mais ou menos assim:


espero por ti com o peito aberto, à boca do coração, os cotovelos desfacelados e um pouco de solidão. regressa-me. devagar, regressa-me. traz aos ombros uma história com um final feliz, sussurra-ma, conta-ma com os anos, deixa-a envelhecer com os meus ouvidos. respira-me. pela tarde quieta, pela vida adiante, deixa-nos esquecer numa qualquer página de livro velho, deixa-nos esmagar com o marcador de páginas de madeira, deixa-nos. ainda que se finde o tempo, ainda que morra com o nosso esqueleto, haverá sempre um pouco mais, um pouco mais de noite até ser dia.

(este texto só faz sentido agora, meu amor)

#234





a história...

#233

memórias:

às vezes creio pertencer a outro lugar, não este onde me sento, outro. um distante, desses que encalham o coração dentro de um peito, outro, que não o nosso, de onde se vê um largo buraco negro. quero rir tudo o que chorei, como se por lágrimas se vertesse em risos o que me doeu, como se fosse o mar capaz de caber dentro desta sala. subitamente ainda me sinto aqui, onde não pertenço, nesta cadeira que é chão oco de madeira tosca, nesta sala distante, onde prateleiras se erguem a sobressalto no plano interior. estou estagnada na noite, que colada ao vidro da janela, ao fundo, inclina a parede para dentro do meu olhar, como se no meu olhar coubesse o branco ou o mar. às vezes creio que estou parada mas há em mim o movimento de ruas paralelas a esta, onde casas se deserdam como órfãos sem lar.

#232

#231

há tanta poesia neste acordar: penso.
ergo-me de mim,
rente aos ouvidos ainda a tua voz,
o timbre das palavras silenciosas,
amordaçadas à pele como rastilhos.
havia tanta coisa para te dizer agora,
talvez o nevoeiro ou a manhã clara,
o fumo do incenso ou o bafo do café quente nos lábios.
tudo isto é teu, tudo em mim te pertence
mesmo não estando.
toda esta vida, assim pequena,
me não é senão a certeza de te querer nela.

#230


.uma espécie de inquietação ao ouvir moldy peaches.

#229

a minha diversão nocturna passa por aqui:


simple minds.
vanilla ice.
milli vanilli.
golimar.



nota: ideal para quem se encontra deprimido e triste.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

#228

espero-te à porta com o coração nas mãos para te entregar. da minha história não falam estas paredes, ainda tão puras de mim, ainda tão brancas que nem o negrume da noite lhes traz um pouco do que tenho para te dar. quero que saibas que já há algum tempo espero por ti, pés adentro do corpo, alguma solidão entre as rugas das mãos e esta tão longa e dura melancolia. falar-te-ei da sombra crepúscular dos meus afectos, escrever-te-ei poemas entre os poros e vida fora dedicar-te-ei o meu silêncio, em penas ou prantos ou outros gemidos, entre noites mal dormidas e não jeitos de te amar. perdoa-me por não saber dar-te, de outro modo, o que me resta do que sou. ao passado deixo estas memórias, invioláveis, tão imperfeitas como as feições do meu rosto ferido de lágrimas. ao presente e ao futuro deixo os nossos corpos dados um ao outro, na mais perfeita sintonia de que já alguma vez se ouviu falar. 

#227

#226

sobre o segundo pensamento do dia de hoje:

pergunto-me: o que distingue um erro comum de um erro de simpatia?

será o erro de simpatia um erro que se comete com uma expressão simpática no rosto? ninguém, até agora, me conseguiu esclarecer. eu prefiro pensar que isto será mais uma daquelas magníficas expressões que só se usam numa ocasião: quando se pretende fugir com o rabo à seringa, (como diz a minha avó).

#225

* sobre o dia de hoje, só me ocorrem 4 pensamentos:
1º minis, tremoços e homens que andam inclinados como as grávidas;
2º o que são erros de simpatia?
3º um par de emigrantes de meia branca e sandália.
4º portas automáticas que não abrem e precisamos de saltar para o sensor dar finalmente conta que está ali alguém que quer passar.

(sobre o segundo dissertarei mais à frente).

#224




ao teu silêncio hei-de escrever uma epopeia de beijos.

#223

* tantas vezes me deixas que um dia quando voltares já não me encontras mãe. se eu pudesse embrulhava o coração num bocado de película aderente.

#222

#221


frida kahlo





não consigo tirar-te da cabeça!

#220

tu sabes dos meus contrários meus dos sabes tu

#219

à costumeira melancolia entrego as memórias que de ti tenho. fazem-me falta os teus braços a segurar a noite pendente sobre o meu coração, faz-me falta  qualquer coisa que te pertença, mesmo que seja o teu não jeito de me dizer coisas bonitas sempre que tas peço. é tão natural já ter-te na minha vida que estar sem ti se parece com o prematuro fim da primavera. e eu que gosto tanto do outono abandono-me à queda de algumas folhas. 

#218




enquanto   o  amor  nos quiser. 

#217

Ouvia-se a porta do quarto poente fechar-se . Ouvia-se o som dos passos assimétricos irrompendo do fundo. Lentos, indisfarçáveis, como duas asas que rastejassem pelo chão, uma mais volumosa do que outra, mais peluda, mais agarrada à terra, e outra no ar, mais breve, mais leve, ritmada, coisa de relógio, de maquineta, de despertador. Ali vinha andando a regularidade dos passos. E a regularidade parava rente ao patamar. E a voz sobressaltada - "Anda alguém aí em cima?".


Lídia Jorge, O vale da paixão.

#216

* passo a citar: "a retenção dos dejectos intestinais provoca sonolência excessiva", ou traduzindo para a linguagem comum: não cagar dá sono. agora entendo porque anda meio mundo com insónias.

domingo, 16 de agosto de 2009

#215

#214

ontem escrevi na noite sem que te desses conta, escrevi as estrelas e a vontade de as chover pelos olhos e enquanto te acomodavas ao meu corpo despedi-me dos dias, como quem se despede da vida que teve quando não estavas. habituei-me já à solidão dos teus gestos, aos não olhares, e muito me surpreenderias se agora te voltasses e com um sorriso nos lábios me dissesses: amo-te. o nosso amor é feito destas não palavras, destes não silêncios, destes não nadas. escrevo mais quando estou contigo do que quando estou sem ti, mas tu ainda não sabes ler a minha caligrafia de felicidade.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

#213



beija-me o ombro.

#212

ou                        8    

                        ou                 80.

#211

podes ficar, só mais um pouco,
a debruçar na noite a minha ausência?

podes gritar-me que volte 
com as mãos suadas de orvalho,
amanhecer nos meus não-gestos?

podes ficar só mais um pouco
a mitigar as horas, 
ou vais agora? 

já não sabes como madrugar no meu corpo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

#210

* quero abraçar-te.

#209



fossem todos os dias como o dia de amanhã.

#208

és contemporâneo deste pesar,
cravar de unhas na pele,
cerrar os dentes,
abrir as mãos e gritar.
és filho do mesmo não jeito de amar
e eu já me habituei às tuas
ausências/ distâncias.

(mas não me fujas de novo)

#207

descobri que possivelmente somos
feitos da mesma inexactidão e
que somos imcompreensíveis um sem o outro.

#206



monet

#206

_ onde é que ela está?
_ foi embora, deu-lhe um problema.
_ quem lhe deu um problema?
_ não faço ideia.
_ hoje em dia ninguém dá nada a ninguém, é de estranhar.
_ ela saiu e só disse: tenho d'ir apareceu-me um problema.
_ como é? afinal deu-lhe ou apareceu-lhe um problema?
_ sei lá bem, não é a mesma coisa?
_ não. se lhe deu um problema quer dizer que alguém que ela conhece ofereceu-lhe um problema, se lhe apareceu um problema quer dizer que não foi intencional.
_ e então?
_ então que é complicado quando nos aparece um problema, é pior que uma unha encravada.
_ não sei. ela disse que tinha de ir à avenida.
_ a sério? afinal sempre é lá o removedor de problemas.
_ quem é esse?
_ não sei apenas ouvi falar.  
_ hum...


* verdadeiras conversas de treta.

#205



podemos amar-nos em si bemol?

#204

sobre o amor pouco hei-de dizer,
já me sobraram espaços onde o esconder,
hoje é dele que se fazem todos os espaços.
ao amor nada digo,
que a lamechice do amor acarreta
tempos e lugares que não me pertencem;
ainda que habite todos os lugares do mundo
em todos os instantes.
que ao amor eu desejei a morte
e hei-de matá-lo um dia nos teus braços.

#203



Life has betrayed me once again

#202

* não percebo porque é que 90% dos indivíduos do sexo masculino, nascidos em Portugal e emigrados em França, deixam crescer a unha do dedo mindinho e andam a exibi-la, bem como a típica indumentária (meias brancas por fora das calças de fato-de-treino e ténis da nike) pelos cafés, snack-bares, restaurantes e churrasqueiras da minha terra.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

#201

dói-me o mundo
de já não me quereres.
doem-me as casas, as portas,
as ruas e os passeios.
dói-me este tempo de nada me dizeres,
e se agora me falasses
meio mundo fugiria
porque a mim, sem ti,
apenas me pertencem
meios dias.
nada é inteiro na tua ausência.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

#200



dissemos sempre tão pouco um ao outro e, no entanto, tão pouco ficou por dizer. gosto de ti.

#199



o destino.

#198

do baú de memórias:

é madrugada e habitam-me algumas memórias. esta varanda está demasiado quieta, o copo de licor beirão apoia-se no chão a meu lado. na mão descansa-me o cigarro que nunca hei-de fumar, nos olhos repousa intacta a tua imagem, no corpo em peso a vontade de te abraçar. sou tão pequena joão, antes fosse maior, do tamanho da distância que nos separa para os meus braços tocarem os teus e te trazerem para mais perto. ando há dias a vaguear uma qualquer saudade, dessas que inquieta e acanha a pele por todo o corpo e arranha as paredes da alma. já há algum tempo que andava para te escrever mas a indecisão ou a astúcia do meu não jeito para sentimentos arrastava-me a vontade.hoje escrevo-te enquanto chove no meu rosto.

#197

* a ti, que não gostas de poemas, hei-de escrever uma antologia.

- hoje já escrevi três pequenos poemas.

domingo, 9 de agosto de 2009

#196


O Grito de Edward Munch.


... ou o meu.

#195

minhas pequenas dúvidas estabelecem
habitação violenta. furam pelos ossos,
espalham os dedos em volta, os caules
aquecidos de vento, roem
lentamente os pátios inertes,
instalam a dobra azul dos cotovelos,
resistem. Têm, ambígua, a elegância
elementar da água. Dobram
as espigas nos dentes,
conhecem o nervo
estendido no céu.
mexem
os dedos na gaveta, calcário
das costas, vigiam com cuidado
as vísceras dos galos, a variável
rotação dos planetas; enquanto a galáxia
gira em si mesma intensamente inútil.
minhas pequenas dúvidas multiplicam os dentes,
decoram marx, passeiam o silêncio
pela trela.resistem,
furam pelos dedos, as vísceras
intensas do vento, estabelecem
cotovelos completos.
têm
a violência constante dos ossos,
resistem, dobram lentamente
a trela das estrelas,
ferem as vísceras
inertes do silêncio, espalham
em volta a demasia oblíqua
das espigas nos pulsos. lêem
o jornal misturado à saliva, aprendem
sem ruído as máquinas da pele:
minhas pequenas dúvidas resistem
o calcário dos nervos,
estabelecem
habitação inútil,
dobram os ossos ao calor dos pátios.



António Franco Alexandre



* as tuas pequenas dúvidas são guerra em mim.

#194

porque havemos de fugir ao que sentimos?
porque não podemos simplesmente ser felizes?
derrubamos tantos muros já, porque não derrubamos mais este?

deixa-me fazer-te feliz.

#193



sei que não gostas de fado mas esta música tem uma letra deliciosa.

#192

* domingos costumam ser sempre dias tristes, este é, sem dúvida, o mais triste de todos os domingos.

#191

amanheci triste e com vontade de te dizer: hei-de gostar sempre de ti. é triste sentir o vazio dos braços após a despedida e estar certa que será lento e tardio o regresso, se o houver. a primeira vez que te vi, à boca da estação de são bento, tive a certeza que eras o homem da minha vida, talvez me tenha enganado a juventude, e por medo ou outra coisa qualquer semelhante, me tenha tornado, durante alguns anos, a tua pior memória. ainda assim foi a ti que sempre regressei, em ti fico, porque o que senti da primeira vez que te vi continuo a senti-lo de todas as vezes que te vejo ou não vejo.

#190



já nem peço que me ames... só que fiques.

#189



a dança de um (des)amor.

#188

* sempre nos faltaram palavras, somos de discursos curtos, diálogos breves... pintamos o amor de silêncios e gestos. nós.

sábado, 8 de agosto de 2009

#187

gosto de acordar cedo, como hoje, ver nascer o dia à varanda e morder ainda uns pingos de orvalho. gosto de beber café e imaginar o teu rosto junto ao meu, os teus braços a envolverem-me. gosto desta melancolia absurda de querer ver pelos teus olhos todas as coisas do mundo, aprendê-las lentamente na tua íris, vê-las amanhecer nas tuas pálpebras. gosto de ti e gostar de ti é um lugar suficientemente perto para me sentir longe.

#186



um dia levo-te aqui.juro.

#185

* hoje quero partir o tempo a meias para ter tempo de morrer nos teus braços.


já fiz demais ao mundo para querer
fazê-lo ver
que o tempo é um modo simples de o entender.
e se eu quisesse apenas
um pouco mais de dor
tinha esquecido para sempre o nosso
amor...
partir o tempo a meias é ter
tempo de morrer nos teus braços afinal.

#184

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

#183

Se me esfolassem agora
encontrariam o teu nome
colado num dos meus ossos.

De mim, continuariam a nada entender.
Quanto a eu, sei que sou teu.

manuel cintra

#182

* habituei-me ao fumo dos teus cigarros na minha varanda; ao telemóvel pousado na minha mesinha de cabeceira; etc...
estranho como se criam hábitos em pequenos dias.

#181



ah o verão! o verão!