quinta-feira, 17 de março de 2011

























Havia uma cidade em espanto linear a cavalo noutra cidade em geometria ambígua, um jardim era metade do outro, em que as pétalas andavam para trás e para diante, com o perfume trocado e o silêncio das cores tremendo no seu erro cheio de alvoroço florido, os arquitectos disseram: é preciso um novo espaço para estas duas pessoas que estão a pensar tanto com o corpo – e numa casa abria-se a porta que vigiava os corredores onde o pólen se acendia e dançava, e de repente a porta descerrava o espectáculo antigo do nascimento da lua num quarto escuro, via-se o que a lua sempre fez para trepar do soalho para o tecto pelas paredes docemente retardadas, era o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados, e alguém escrevia à máquina num dos planos de intersecção urbana, e a frase escrita aparecia com o seu rumor externo noutro sítio, mas agora via-se no meio de uma clareira de silêncio vivo, e ia-se apreendendo a nossa mútua nudez colocada no sentido da frase, nós éramos essa cidade tremendamente posta em uso, em toda a parte estavam mãos em vez de garfos e lâmpadas, e a frase era assim: o amor, as mãos ininterruptas.

herberto helder











todos os dias percorro a cidade à procura do teu corpo. todos os dias na cidade. todos os lugares onde estivemos. onde fomos porventura felizes. tu com o teu sorriso sereno e eu com as minhas mãos nos bolsos. todos os dias. sempre um atrás do outro. no cimo da rua estreita. no largo do paço. nunca pensei que sentiria falta dos teus passos. longos. passos em volta. era como se me procurasses nos lugares errados. e eu atrás de ti a ver-te de olhar suspenso. caminhar. todas as árvores te eram como filhas. se lhes acudia a luz paravas. e o teu rosto assim quieto. sereno. no meu se vinha encontrar para um sorriso. não posso dizer que não te sinto a falta. sobretudo dos olhos. esses olhos grandes. negros. essa pele calma. essa pele. que em redor dos lábios era mais fina. tão fina que quando sorrias parecia rasgar-se nos cantos. espero-te. como de costume. à porta da casa onde nos sentávamos quando por falta de andar o peito se estreitava. abraçava-te quando a luz fugia. era o meu corpo o teu por um momento. enquanto a luz tardava o teu pescoço pousado no meu ombro. a cabeça a cair-te pelas minhas costas e esse jeito indiferente de olhares a rua de lado.











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