sábado, 17 de maio de 2014













mariam sitchinava












Mar
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
al berto











não sei ana se já te falei da chuva. se já te disse das flores. de ser primavera lá fora. se te contei de quando me cortei no tórax com uma tesoura - queria tirar-me do peito o coração - de como no lugar da ferida me cresceram algas. tempos houve em que cortava o corpo. procurava em todas as feridas um pedaço de coração a abater. doía-me tão forte dentro, ana, doía-me tão forte e tão fundo dentro da pele. não sei ana se já te falei de amo. de voltar os olhos para o mundo e ver crescer-lhe flores dentro. é destas flores que te devia ter falado. de como estas flores te enchem subitamente de vida. e o amor também dói. sobretudo quando está longe e o corpo o chama para perto e ele não ouve. é que o amor às vezes não tem ouvidos ana - trouxe-te hoje um segredo. quero dizer-to quando o sol chegar mas hoje não há sol. estou terrivelmente só. ana. - trago dentro de mim todas as histórias. marcas de facas e tesouras na pele. memórias que arrastam memórias. de sangue. de dor. de ter morrido já - ainda não te contei de como morri. era dezembro. engoli uma caixa de anti-depressivos. lembro-me de ter escrito um pequeno testamento. deixava-te os meus livros ana.  a ti que nunca conheci. deixava-te os meus livros - o hospital é um lugar frio quando se acorda da morte. eu tinha frio e não havia nenhum corpo ali ao lado.  que me aquecesse. que me abraçasse. nenhum corpo. ana. nenhum -  morri e nasci sozinha. e digo-te ana ninguém deve morrer só. não há nada mais triste do que morrer só. não sei hoje ana se já te falei da chuva.



































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